sábado, 17 de dezembro de 2011

Concursos de beleza? (postado novamente)

Prof. Amilcar Bernardi


Os racionalistas como Descartes defendiam a impropriedade do corpo e exaltavam a razão. As coisas do espírito (racionalidade) não se confundiam com as coisas corporais. O corpo (os sentidos) se engana a todo momento, portanto, não é confiável. Inclusive prejudica a racionalidade, diziam. Lembrem (como exemplo) que foram os cálculos matemáticos e a inventividade do espírito humano que nos garantiram saber o tamanho verdadeiro da lua! O olho não foi capaz disso.
Pensavam os racionalistas que cultuar o corpo como fonte do conhecimento e da humanidade do homem é errado. O cultivo do espírito (razão) é o que faz do homem o que ele é, o que o diferencia dos animais.
Claro que essas afirmações já estão desgastadas pelo tempo. Hoje sabemos que espírito sem corpo é fantasma e corpo sem espírito é zumbi. Quero dizer que a racionalidade acontece através do corpo (dos sentidos) e que corpo sem racionalidade não é um ser humano.
Agora pergunto: Quando colocamos a beleza (do corpo) como um valor fundamental, o que acontece?
Todos os que participam dos concursos de beleza vão dizer que essa pergunta não faz sentido. Dirão que a pessoa não é bonita porque tem um corpo bonito e sim porque tem simpatia, fala bem, tem expressão corporal e cênica. Enfim, outros atributos (além dos físicos) fazem aquela pessoa bonita! Ficam inclusive ofendidos e nos chamam de ignorantes se falarmos que, mesmo assim, o que vale mesmo é o corpo. Os adeptos dos concursos de beleza quando advogam que a beleza da alma se confunde com a beleza da plástica corporal, tentam se defender antecipadamente. Defendem-se dos que dizem que tais concursos são principalmente exposição de corpos. A necessidade desta defesa é compreensível porque é muito difícil defender de forma clara uma vitrine de corpos humanos. Então é imperioso encontrar algo mais do que a exposição de pele, cabelos e ossos para podermos validar moralmente um concurso de beleza.
Quando a bela criança de seis anos, Natália Stangherlin, ganha duas vezes concursos internacionais de beleza, podemos dizer que estamos incentivando nela aquilo que a faz humana? Quero dizer, estaríamos dizendo a esta criança linda que o principal na vida não é a plástica? Ou estaríamos dizendo, no sentido do primeiro parágrafo, que o corpo sem espírito (racionalidade) deve ser cultuado? Melhor ainda: uma criança indefesa, aos seis anos, exposta aos flashes, ao glamour, às viagens internacionais, conseguirá internalizar valores outros que não somente os da beleza física? Quais valores estariam sendo fixados na alma dessa criança, antes que ela tenha condições de refletir sobre os próprios valores?
Claro que os defensores dirão ao ler o parágrafo anterior: convém entender que a beleza corporal dura pouco tempo. Que antes da reflexão madura é imperioso curtir a juventude e a graça de ser bela.
A pressa justificaria a irreflexão. Afinal, ficamos feios muito cedo.
Arrisco-me muito ao escrever a minha opinião. Serei duramente criticado.
Entendo que as crianças não sabem o que é o belo. É a gente que ensina. Também não sabem o que é o bem. A gente ensina. A criança é linda porque é pura. È linda porque é boa. A criança não é linda porque é bela na plástica corporal. O corpo é um detalhe pequeno se pensarmos a beleza de ser criança.
Cabe saber se aos seis anos salientar a beleza plástica é algo bom. Gostaria de manter essa dúvida em minha alma até que provem em contrário, ou seja, que deixar a criança exposta ao olhar público, ávido por belezas passageiras e desejosos de corpos magníficos, faz bem. Se faz bem para o desenvolvimento das meninas e meninos como um todo! Insisto: como um todo. O desenvolvimento de uma faceta só empobrece.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Não tenho um Global Positioning System

Prof.Amilcar Bernardi


Não tenho um GPS (Global Positioning System - Sistema de Posicionamento Global) dentro de mim. Penso que algumas pessoas têm. Elas parecem estar bem posicionadas psicologicamente, sabem onde estão e para onde vão na vida.  Possuem um GPS existencial que não possuo.

Estas pessoas dão conselhos e orientam os transeuntes da vida. Sentem-se faróis para os navegantes existenciais. Não consigo ser assim. A coisa fica mais complicada quando estou no meio acadêmico. Entendo aqui academia no sentido lato, ou seja, refiro-me as instituições vocacionadas para o ensino.

No meio acadêmico há mais faróis que navegantes.  Eu gosto mais de navegar que sinalizar caminhos.  Nesses locais de iluminados sempre (sempre mesmo!) alguém me aborda perguntando sobre mestrados e doutorados.  “Qual tua linha de pesquisa?” questionam-me despudoradamente, algo como a fatalidade do “Decifra-me ou devoro-te”.

Como não tenho GPS, sou um tanto desorientado no mundo intelectual, fico bastante constrangido. Sou obrigado a responder que estudo de tudo um pouco. Sinto-me como um clínico geral numa conferência de especialistas.  Mas não posso fugir da minha verdade: eu estudo por que gosto de estudar. Claro, minha área é a educação! Voltando ao exemplo que dei, seria como um médico dizer que sua área de estudo é a saúde... muito amplo, não? Porém, estudo assim... amplitudes!

Cobram-me estudo linear (linha de pesquisa). Acabam indicando o professor fulano ou beltrano que trabalha com tema similar ao que abordo. Assim ficaria fácil encaixar-me em tal ou qual pesquisa, nesta ou naquela Instituição de Ensino. Causo espanto quando agradeço e digo timidamente que no momento não quero isso para mim. Então me abandonam como um sujeito incapaz de avançar pelos caminhos dos saberes. Estou em franca desvantagem porque eles nasceram com GPS. Eu não! Adoro ficar por aí aprendendo ao léu. Gosto de sentir-me livre fazendo o que mais gosto, escrever. É isso. Talvez um dia eu adquira o Global Positioning System existencial. Só então serei um acadêmico responsável, mais um faról a iluminar as trevas dos perdidos sem GPS.


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Crítica à matéria do Fantástico

Prof. Amilcar Bernardi

Estamos enfrentando (e já faz um bom tempo) problemas na educação. Problemas óbvios como a estrutura física dos prédios e os baixos salários. Também é problemática a colisão entre os valores da sociedade com os valores das escolas. Acrescento a esses problemas, a autorização que muitos se dão de opinar sobre a educação. Criou-se o caos na cabeça das pessoas, pois os especialistas pouco são ouvidos e quando o são, a linguagem é muito complexa. Convém lembrar que a linguagem dos educadores é complexa como é a linguagem das demais ciências.  Todas as ciências têm dificuldade em simplificar para o leigo seus saberes. Com a educação não é diferente. Por isso os opinadores são mais ouvidos que os conhecedores do assunto.
Confesso não ter assistido os quadros anteriores do Fantástico, intitulados Conselho de Classe. Apenas o deste domingo assisti. O programa apresentou um professor dito modelo de sucesso. Nos comentários dos apresentadores haviam palavras como “infalível”, “pop star” e “eletrizar”.  As cenas mostravam um professor alegre e bom comunicador.  Todos os vieses apresentados sugeriam que aquele tipo (e existem infinitos tipos) de aula era o ideal. A insinuação era que um professor mais festivo, alegre, atualizado nos gostos adolescentes e bem humorado, é um educador necessariamente bem sucedido. Por consequência, afirmou-se subliminarmente que o aluno só aprende (ou aprende mais fácil) com professores que escolhem o fazer pedagógico apresentado pela emissora de TV.
Evidentemente que a matéria do Fantástico é extremamente simplória e é uma visão “da moda”.  Qualquer livreco que fale sobre as “10 maneiras de ser um professor de sucesso instantaneamente”, diria o que foi sugerido pela matéria.  Não senti-me bem ao ver aquelas cenas.  Não sou contra a alegria como veículo para a aprendizagem. O que quero dizer é que não existe um jeito de ensinar. Existem infinitos jeitos. Escolher um e mostrá-lo como exemplo, é minimizar a complexidade intrínseca ao manejo de turmas.
Assusta-me imaginar que (de imediato!) a matéria foi aceita pelo público. Num mundo atiçado pela velocidade e pela aversão ao que dá “trabalho”, entendo que a matéria não ajudará em nada os problemas que o país enfrenta nessa área tão vital para o futuro.

domingo, 27 de novembro de 2011

Meu mundo pela janela...

Prof. Amilcar Bernardi 
Estou usando o mesmo título da crônica do escritor J. Bicca Larré, pubicado hoje no Jornal Diário de Santa Maria.  O escritor comenta suas percepções da vida, vista por sua janela.  Fiquei imaginando que todos temos nossas janelas para ver o mundo. Temos janelas reais, físicas, aquelas que têm persianas e vidraças. Também temos as “janelas dos nossos olhos”, ou seja, nossa inteligência está no cérebro/mente e as informações visuais que chegam até nossa consciência vêm pelos globos oculares. Nossas retinas são as vidraças, as pálpebras as cortinas. Estamos dentro de nós debruçados nas janelas oculares “vendo” o mundo, com certeza.
Cada um tem suas janelas. Os preconceitos são janelas antes dos olhos e dos ouvidos. Tem janelas grandes que deixam passar muita luz. Outras janelas são bem menores, menos arejadas. Tem vidros mais e menos limpos. Como a visão nada mais é que a captação da luz, tudo isso faz diferença quando pensamos o mundo. Não há contato direto com nosso exterior. Existem janelas. Elas são feitas em conjunto, ninguém consegue ser construtor único, autor exclusivo das janelas que nos prendem/libertam
Mas minha reflexão ao ler o texto do Jornalista Larré, foi além disso. Tem uma janelinha/janelão muito interessante. A janela do monitor do nosso computador. Ela abre-se para o mundo. Esta escancarada 24 horas por dia, sem cortinas ou limites. Então algo maravilhoso acontece. Quem olha através dela é obrigado a escolher o que quer ver. É tão grande a paisagem que podemos ver por essa janela, que é impossível ver tudo ao mesmo tempo. Então focamos. Olhamos pequenas coisas. Como são muitas coisas e só podemos ver aos poucos, escolhemos a velocidade. Olhamos aos poucos e rapidamente tudo o que podemos “ver”. Perdemos por consequência a profundidade. A janela do monitor oferece tanto que vemos cada vez menos. Melhor dizendo, vemos mais para ver menos. A quantidade matou a qualidade.
Lembrei que os filósofos clássicos tinham apenas as janelas dos olhos e alguns instrumentos de cálculo. “Viam” pouco e já tinham imensa dificuldade em interpretar o mundo.  Agora a coisa piorou, “vemos” muito mais e muito menos nos interessamos em refletir sobre o mundo. Tudo é tão rápido que filosofar tornou-se lento demais para o século XXI.






quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Lembrando do carnaval que vem aí...

Prof. Amilcar Bernardi


Carnaval? Não, obrigado.



Tenho uma relação estranha com o Carnaval.  Olho as mais diversas manifestações de alegria neste período e elas não tocam-me a alma. Entendo até a relação atávica dos homens com a percussão, uma relação milenar junto aos atabaques, tambores e similares. Posso sentir meu coraçao pulsar mais forte quando o som ancestral da bateria choca-se contra meu peito. Uma sensação muito boa, porém... para por aí. Não sinto ímpetos de extrapolar minha rotina diária de felicidade. Não consigo aceitar o convite para assumir a postura carnavalesca de uma felicidade explosiva, não usual e abusiva em muitos casos.

Sendo eu medianamente informado, compreendo que a época carnavalesca sugere um tempo de descarga emocional coletiva, quase um gozo sexual. E essa descarga só é possivel na liberdade concedida pela sociedade (normamente tão opressora) neste período. Uma liberdade vigiada, porém, uma liberdade extra concedida num período curto a ser usufruido com sofreguidão. Meus olhos ficam extasiados por tanta beleza, mas, não consigo gostar deste convite ao delírio.  Sinto-me inclusive um estrangeiro no meu país. Vejo o encantamento coletivo com os festejos carnavalescos como um excesso doentio de uma felicidade temporária e falsa. O Carnaval é uma espécie de sursis social. Nossa verdadeira alegria acontece no ano inteiro, não em um período tão restrito e de excessão.

De fora do “espírito carnavalesco” posso observar que neste período as pulsões estão mais desimpedidas. Os desejos podem transparecer – e serem satisfeitos -  com maior facilidade. Claro, há inúmeras festas no mundo que permitem a mesma coisa. Não é um privilégio nosso. Há milhares de anos inúmeras festas pagãs tem o mesmo teor de liberalidade e beleza do carnaval brasileiro. Puxa, isso significa que eu não sentiría-me atraído por muitas festanças por aí! 

No país do futebol e do carnaval não jogo bola e não gostaria de participar do sambódromo.  Então sinto-me um estranho. Deveria gostar... mas não gosto. Eu entendo a importância e o que significa esta festa nacional. Compreendo mas não a sinto. Apenas a compreendo cerebralmente. Prefiro curtir as alegrias e possibilidades de ser feliz no meu dia a dia. Um evento só, mesmo que perdure por alguns dias, não pode satisfazer-me.

Caranaval? Não, obrigado.

domingo, 13 de novembro de 2011

De alguma forma todos somos deficientes... e todos somos inclusos

                      
Prof. Amilcar Bernardi 

Para alguém ser inserido no mercado de trabalho, o ambiente escolar e o consequente aprendizado, são a condição sine qua non. O mesmo acontece no que se refere à inclusão do jovem na linguagem gramaticalmente correta. Idem na sua inclusão nas artes e nas grandes obras literárias. Privar alguém saudável do ambiente escolar é privar esta pessoa da vida em plenitude.  Quem não lê eficientemente é um deficiente para a leitura, quase um cego. Quem não domina a linguagem técnica do direito, é quase um deficiente auditivo num julgamento onde é réu. Não conviver e aprender na escola é um prejuízo enorme na vida do cidadão na polis. Se a escola não inclui as pessoas no mundo social e do conhecimento, não é uma escola. É outra coisa.

As crianças aprendem a dividir seus brinquedos com os coleguinhas. Desenvolvem a capacidade de negociar espaço nos recreios e nas brincadeiras coletivas. Descobrem qual a postura social adequada e a linguagem esperada no convívio. Junto com o aprender a comportar-se no ambiente público, vem a aprendizagem do Português, da Matemática e da Ciência.  Se uma criança ficar em casa com professores particulares, e com amplo acesso a materiais educativos, mesmo assim, sua aprendizagem global será diferente daquelas crianças incluídas na escola. Estar fora da comunidade aprendente cria algum tipo de deficiência, ou seja, a criança apresentará ausência de alguma coisa, uma incompletude. A escola é o lugar natural da superação de deficiências para todos.  Neste contexto, a inclusão legal dos deficientes físicos e/ou mentais na rede de ensino, apenas ratifica a universalidade do direito à matrícula na escola. 

A inclusão de qualquer pessoa na escola e o que a escola faz dela na cultura é de suma importância social.

Incluir na escola não significa apenas juntar pessoas numa sala de aula. É preciso profissionais especializados, estrutura adequada e um ambiente de aceitação. Incluir é dar tempo diferente aos diferentes. Incluir na escola é avaliar a aprendizagem, de acordo com as possibilidades individuais de aprender. Uma escola inclusiva não tem uma metodologia, têm várias. Muitas metodologias para as muitas diferenças que se apresentarão.

A lei diz que as classes especiais existirão concomitantemente às classes “convencionais”. O trânsito do aluno especial em ambas as classes está garantido. A diversidade ensinará tolerância e cooperação. Os alunos que aprendem com mais facilidade em alguns aspectos, perceberão que podem ajudar mais. Os alunos com dificuldades maiores, perceberão que podem trocar experiências únicas. Superar a deficiência visual para aprender os conteúdos escolares, é similar a superação do professor que tem que ensinar quem não vê, sem ter a experiência da cegueira.  O professor vai ter que reaprender seu ofício. Todos terão que aprender e todos terão que ensinar.

De alguma forma todos somos deficientes e precisamos ser incluídos. A escola é apenas mais um veículo de inclusão.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Fusca ou Porsche?

Prof. Amilcar Bernardi

Velocidade. Ausência de linhas retas. Saltos, sustos, assombros. Frações múltiplas de variadas realidades. Vórtice. Assim é o mundo da informação virtual, ou melhor, do mundo midiático.  Textos e reflexões longas não despertam mais o interesse. Pelo menos um interesse prolongado. Pior ainda se a reflexão for trabalhosa. Nesse mundo amalucado, tudo está na distância de um clic.  Um clic, um pulo. O que retém nosso olhar é visto apenas por segundos.
O mundo virtual tem tudo. Tudo a qualquer tempo. E de forma resumida com linguagem simples. Muito simples.  O que é muito complexo não é preferido. Até é acessado, porém, por alguma imposição. Na velocidade dos dedos clicantes as mentes andam. Andam rápido. Bem rápido. Rapidez superficial. Rapidez horizontal.  A profundidade, a verticalidade tornou-se algo penoso demais.  Nossos cérebros estão adaptando-se a isso. Rapidamente, inclusive.
Numa estrada de alta velocidade, é a reflexão cuidadosa que a sinaliza e a constrói. Construir/planejar uma estrada para veículos que podem andar a 300Km/h leva tempo, muito tempo. Nesse caso, a lentidão é que garante a velocidade. O cálculo e a profundidade das reflexões é que permitem a segurança do carro veloz. Se todos fossem pilotos de corrida, substituindo os engenheiros e arquitetos, os acidentes seriam inevitáveis. Por analogia, eu diria que a escola pensa como engenheiros. O Google, como os pilotos.  Não podemos escolher um ou outro. Planejadores de pistas e pilotos são necessários, não se excluem.
O problema acontece quando pessoas simplistas, sem darem-se o tempo de entender a complexidade da escola hoje, afirmam que os professores e suas aulas devem acelerarem-se. Querem que os educadores se igualem as mídias. Isso não é possível. A mídia pode dar-se ao luxo de ser inconsequente, irresponsável até. Ela pode ser um bólido veloz. A escola não. É ela que tem que refletir e estimular a reflexão. E isso é feito no tempo da leitura, da socialização, do respeito às regras e do gosto pelo aprender. Que tempo é esse? Tempo de um Fusquinha ou de um Porsche? Não há resposta fácil. Depende do aluno, do contexto, dos valores, das vivências pessoais, do ritmo de cada um.
Penso que professor sempre será um “engenheiro”, que antes de andar na pista de alta velocidade, sabe pensá-la e entendê-la. O jovem quer ser piloto e acelerar. Não importa para ele as leis da Física ou de trânsito. Mas fato é o seguinte: é preciso que saibamos bem mais do que acelerar, mesmo que isso leve algum tempo.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Coletes argumentativos

Prof. Amilcar Bernardi 
A argumentação é dependente do poder de abstração do ser humano. Também depende do vocabulário e da habilidade de saber trabalhar com a lógica.   A argumentação transcende o que julgamos ser o mais verdadeiro em nós: os sentidos! Argumentar torna relativo até o que meus olhos veem, o que minha pele sente. Sob este aspecto prepondera quem argumenta mais eficazmente. Portanto, ficam em segundo plano os cinco sentidos e todas as testemunhas oculares. A argumentação é como uma máscara bonita onde o que mais vale é a aparência e a coerência. Uma pessoa de má-fé, porém boa argumentadora, pode fazer prevalecer sua ideia como se fosse a melhor possibilidade. Assim como uma boa ideia de um bom sujeito, pode ser preterida porque seus argumentos não foram convincentes. Nossa sociedade (política)  é baseada em argumentos. Entendo aqui argumentar no sentido lato, ou seja, o desenvolvimento de uma discussão baseada em argumentos e contrapontos.
Os milhares de anos necessários para que nos tornássemos civilizados, criaram roupas verbais, verdadeiros coletes argumentativos à prova de balas. A política partidária então é um carnaval de fantasias feitas de dicções e contradicções! Ninguém mais pode, após o invento da fala, aparecer nu de argumentos. Nenhuma alma de sucesso aparecerá despida de sujeito, predicado e cópula.
Quando o sol esta muito forte, as roupas e todos os artifícios para o embelezamento perdem sentido e são jogados fora.  O calor insuportável faz com que apareçamos como realmente somos, as maquiagens borram, as roupas caem, pois se tornaram insuportáveis. Os argumentos são assim. Quando o calor da discussão atinge magnitude, aparece de maneira bem crua o que de fato queremos, pensamos e acreditamos.  Inúmeras vezes, sem as roupagens bonitas dos argumentos, as agruras de que também somos feitos transparecem. É o calor interno que pode prejudicar nossa carapaça verbal.
Amo os argumentadores. Gladiadores das discussões. Armados com os dardos gramaticais e com as setas do vocabulário. No mundo civilizado, mundo das informações abstratas e on-line, melhor guerreiro será aquele que esgrimir melhor os argumentos. O homem nu de argumentos é um guerreiro desarmado. Pobre criatura fadada à morte sem defesa alguma.

domingo, 6 de novembro de 2011

Comunicação e pesca

Prof. Amilcar Bernardi

Comunicamo-nos quando emitimos/recebemos mensagens através de processos convencionados (linguagem: sinais, símbolos, pausas, enfim signos...). Como disse Aristóteles, somos animais políticos. Entendamos aqui política como habilidade adquirida no trato das relações humanas: civilidade, negociações, cortesia e astúcia.  Habilidades exclusivamente humanas por que dependentes da capacidade comunicação.

A comunicação só poderá acontecer num sistema estruturado, num contexto onde seu conjunto de elementos possua alguma relação, uma coordenação inteligível. Simplificando: as pessoas entendem-me quando falo porque mantenho-me dentro das regras de fala comuns a mim e a quem escuta-me. O que falo relaciona-se com a capacidade de entendimento do outro (ouvinte).  Portanto, o ouvinte/receptor não é passivo. Ele está escolhendo sentidos dentro de sua história pessoal. É a sua história que vai “pintar” na tela da mente as imagens e sentimentos relacionados com o que está sendo ouvido.

Fico então imaginando o trabalho do pescador. Vai até o rio em que haja peixes. Não qualquer peixe, mas aquele que deseja pescar. Não é qualquer rio, mas aquele que tenha o peixe que deseja. Encontrado o local adequado, escolhe o melhor caniço. “Melhor” significa o mais adaptado para o porte do peixe. E mais ainda: preocupa-se com o anzol compatível e a isca perfeita. É uma espécie de planejamento onde o determinante (o peixe) está fora do pescador, está invisível dentro da água. Aí que está a graça da pescaria, o investimento no desconhecido: sabemos que o peixe está lá, mas também sabemos que é possível voltarmos com as mãos vazias.

Comunicar-se é algo semelhante a pescaria.  O rio é a mente do outro. Sei que lá tem idéias, experiências, conhecimento, preconceitos, desejos...  E lá vou eu – o comunicante – prepotente, pensando que a pescaria será boa. Pretendo pescar representações na cabeça do outro. Representações que sejam aquelas que eu quero pescar/provocar nele. As que eu quero e não outras que o receptor tenha para me oferecer. Caso eu seja um pescador inexperiente, esquecerei de procurar o argumento-anzol adequado. Não serei escrupuloso ao oferecer a idéia-isca “perfeita”, muito menos escolherei a cabeça-rio que tenha o que preciso para inspirar representações específicas. Saio por aí jogando iscas e anzóis como um louco. Isso prova que não percebi que tão importante quanto meu desejo de seduzir/capturar/inspirar é o desejo do peixe, a realidade dele.

Comunicar é isto: uma arte arriscada onde tenho que quase adivinhar o que está abaixo das águas da aparência para preparar meus caniços, anzóis e iscas. Quanto mais hábil eu for em ver prever o que está abaixo da superfície, melhor pescador/comunicador serei.

sábado, 5 de novembro de 2011

Meio copo de água e a (in) disciplina na escola

Prof. Amilcar Bernardi

Em cima de uma mesa está um copo com água bem gelada. Para ser mais exato, meio copo de água gelada no verão bem quente.  Algumas pessoas ficarão felizes em ter meia porção de água numa temperatura tão alta. Outras tantas ficarão frustradas por terem apenas a metade de um copo de água.  Evidentemente todos estão vendo a mesma coisa. O que está variando é a relevância que dão às facetas, às parcelas da realidade que percebem. Nesse caso, ninguém está errado. Só podemos avaliar as consequências das escolhas que o observador fez ao perceber o fato indiscutível: há meia porção de água no copo e, portanto, ao mesmo tempo, não há água na outra porção.
Penso que a vida é isso, pontos de vista sobre fatos. Os fatos são indiscutíveis, mas minha leitura deles é outra coisa! Nossas opiniões sobre a escola não seguem princípio diferente disso.  
Uma possibilidade (uma porção do copo) é julgar que a disciplina é algo imposto, sempre imposto.  Nunca será algo justo (mas democrático) porque sempre haverá alguém esmagado pela regra determinada pela maioria. Para estes - a minoria - a norma sempre será externa, pois sempre irá contra seus desejos. Seguindo essa reflexão, a regra sempre é dual: de um lado alguém que ordena, de outro alguém que obedece. E toda a aquiescência é acrítica.  Esta forma de pensar não é totalmente desprezível. São apenas facetas de um fato: existem normas.
Por outro lado (outra porção do mesmo copo) é possível refletir diferente. Podemos entender a disciplina como uma sujeição das atividades instintivas às refletidas. Então as regras são (meus) limites impostos aos (meus) instintos. A reflexão limita nossos desejos.  As regras, sob este prisma, são o ordenamento do meu psiquismo de dentro para fora. Claro, ao mesmo tempo, sendo que a razão trabalha sob influência dos valores sociais – introjetados – também é um ordenamento de fora para dentro. Portanto, temos que ser sempre sujeitos críticos. Diante dessa dialética feita das regras que eu crio e das regras que criam para mim, eu faço-me.
A sala de aula é nosso “copo de água”.  Um tanto do tempo escolar é regrado. Outra porção é mais livre. Alguns/muitos intelectuais veem com maior relevância o lado cheio de disciplina, a porção irrespirável, locupletada de “nãos” e preenchida por ranços autoritários. Estes pensadores ainda enxergam o fazer medieval na escola atual. Não posso dizer que estão errados, porém, posso afirmar que estão vendo parte do copo e um copo é feito de suas partes, se tirar uma, não é mais copo.
Numa escola só há regras porque há (crescente) liberdade a ser regrada. Sem liberdade, não haveria porque tantos questionamentos sobre a (in) disciplina. Inclusive, muitas vezes a liberdade nas escolas beira a permissividade.  Qualquer pessoa pode ver nos corredores das escolas (como se fosse o sangue nas veias) crianças e jovens correndo, andando, falando, brincando, escorrendo escadas abaixo como cascatas, ou subindo as escadas como as águas carregadas pelas rodas d’água das fazendas. Estudantes fluem, escorrem e respingam em todos os lugares escolares... irreprimíveis.  Então as regras são como as normas de trânsito, existem para que o fluxo seja maior, mais rápido e mais seguro. Ninguém, no trânsito, deve morrer porque é livre para dirigir como quer. São portanto, regras que libertam.
Eu gostaria que esse texto servisse para reflexões.  Acredito que por ignorância algumas vezes, maldade muitas outras vezes, muitos afirmam que a disciplina na escola é isto ou aquilo. A disciplina às vezes é outra coisa, outras vezes ela é muitas coisas. Fica a reflexão: que porção do copo disciplina estamos privilegiando e qual estamos ignorando? 

domingo, 30 de outubro de 2011

Política: espelho de Sísifo.

Prof. Amilcar Bernardi

Na historia infantil clássica, a rainha tresloucada pergunta ao espelho: há alguém mais bonita do que eu no reino?  O espelho como todos sabem, não responde como a toda poderosa e bela rainha queria.  Enraivecida, manda matar a bela mocinha. O espelho tem dessas coisas. Nem sempre mostra o que queremos ver. Então somos tomados por emoções incontroláveis.
A política é nosso espelho. O que acontece espelha quem somos. Podemos até não gostarmos, afinal, nessa área, a verdade sempre dói.  Porém, não podemos mandar matar ninguém nem destruir o que não gostamos na imagem apresentada. Fica só a angústia e a tristeza com o que vemos de nos mesmos. Como no mito de Sísifo (Sísifo foi condenado a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo), de tempos em tempos somos chamados a reconstruir nossa imagem, mas o resultado é sempre o mesmo.
O fundo mais profundo que poderíamos descer aconteceu. Olhamos o espelho da política e nos vemos Tiririca! Palhaços, ignorantes e maliciosos. É esta a imagem que está nos incomodando. Os espelhos não mentem. Apenas refletem o que se posta à frente deles. Não podemos quebrar o espelho nem podemos negar o que nele se reflete. É a nossa maldição de sujeitos civilizados e construtores da cidadania.
A política é nosso espelho de Sisifo, sempre mostrando que tudo se repete e reflete!  Esperando-nos nas eleições seguintes estão milhares de Titiricas. O triste espelho da política nos mostrará novamente nossas escolhas a modo titiriquês. 

domingo, 16 de outubro de 2011

Ninguém deve nada a ninguém.

Prof. Amilcar Bernardi
  
A internet trouxe uma aceleração incomensurável para o fluxo de informações e contra-informações. As grandes redes televisivas não conseguem sequer acompanhar a velocidade do que está sendo informado nos blogs, no Face, no Twitter e nas redes similares on-line. O colapso é ainda maior porque, as grandes mídias tradicionais são movidas a peso de ouro. Qualquer programa televisivo ou até jornal impresso, depende dos anunciantes. Suas estruturas são complexas, lentas, caras, dependentes de patrocínios.  Cada informação dispensada por tais empresas são como canhões, tem grandes impactos.  Portanto, estão sujeitas a processos judiciais caros, longos e muitas vezes com desfechos injustos.
A grande imprensa tem uma relação incestuosa com a política partidária, muitas vezes para poder sobreviver. Movem imensas quantidades de capitais e promovem crescimento econômico, porém, um revés na economia globalizada e o pior pode acontecer. Os leitores, ouvintes ou telespectadores são clientes antes de tudo. As notícias têm que serem apresentadas de maneira a minimamente agradar pela qualidade e beleza. Além disto, se for TV, depende de toda uma parafernália para que o sinal seja de qualidade. Se jornal, até seus entregadores são importantes. Nas grandes empresas do ramo a notícia é meio para um fim, a manutenção da empresa e, preferencialmente, não só manter, mas dar lucro. As mensagens são impessoais, mas, têm que agradar as pessoas, indivíduos com gostos irrepetíveis e cada vez mais exigentes.
No ciberespaço o trabalho das mídias off-line está sendo capilarizado e pessoalizado. Pessoalizado porque as pessoas acrescentam às notícias das grandes mídias suas experiências, expectativas e críticas. Os indivíduos vão para seus Pcs e refazem, personalizam, colorem as informações e passam adiante pela rede. Os internautas, polinizadores, dão (re)vida ao comunicado pela grande imprensa e repassam um tanto de si junto com as informações. Os cidadãos cibernautas não querem patrocinadores, não tem mega estruturas e nem querem convencer. Armados com seus laptops vão à luta, como beija-flores com pólen nas patas, voam por aí polinizando livremente. As pessoas comunicam agora de maneira personalizada, recriando. Comunicam pelo prazer de comunicar, de fazer-se ouvido, de fazer parte de uma gigantesca rede informacional. Teclam sem saber para quem. Teclam para outros teclados reteclarem. Fazem crítica contundente, provocam medo nos poderosos. Não precisam prestar contas para ninguém nem produzir textos elaborados. Isto porque não tem consumidores do outro lado do monitor. São livres. Se não gostam bloqueiam ou deletam. Se gostam, viram seguidores e recomendam sites, blogs e pessoas do Twitter. Neste mundo de ninguém, todos são donos dos seus narizes, ninguém deve nada para ninguém.
O mundo ciberinformacional é cheio de perigos. Tudo que é dito precisa ser checado. Como todos são dignos de serem ouvidos na rede, todo o cuidado é pouco. Porém, os cibernautas são coerentes com seus modos de pensar. Não teclam o que não querem teclar. Comunicam por prazer. Comunicadores e receptores se confundem na velocidade on-line: ao mesmo tempo que recebem, emitem. Tudo a um tempo só. Neste sentido a verdade pessoal se apresenta nua e crua. Desde que eu tenha bom senso, digito o que quero digitar. A censura inexiste. Ninguém deve nada a ninguém.


sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Somos intertexto e contexto.

 Prof. Amilcar Bernardi

Somos textos. Cada um de nós é um texto a ser lido. Cada roupa, cada trejeito, cada  gesto, cada palavra dita compõe algo a ser lido. Somos um poema, temos informações harmônicas entre si. Cada sujeito tem uma sintaxe muito especial. Estamos expostos no mundo, estamos aqui para sermos lidos.
Somos pausas, somos exclamações, somos pontos e vírgulas todos os dias. Somos signos para serem decodificados. Apenas pelo fato de existirmos as pessoas que nos rodeiam, que sabem de nós, são obrigadas a encontrar um sentido para nós, um significado para o que estamos afirmando com nossa presença. Somos frases, somos textos complexos.
Tu e eu somos citados, parafraseados e parodiados todo o tempo. Estamos e somos nos discursos alheios. Nos tornamos imagens, palavras e discursos nos outros. Por isso somos muito importantes, fazemos a diferença porque somos fala e provocamos falas. Cada um torna-se vocabulário e conhecimento para outros.
Somos intertextos. A presença discursiva das pessoas invade o que eu sou. Eu falo o já falado. Eu comunico o que já foi comunicado. Porém quando me dou a conhecer, quando me dou à leitura de quem quiser, passo a ser parte do repertório alheio, passo a ser contexto para o outro.
As pessoas são informações que penetram em mim e me constituem. Da mesma forma que passo a constituir todos os que entram em contato comigo.
A humanidade é um grande comunicado onde cada um é uma palavra, pontuação ou verbo. Juntos constituímos um enorme texto chamado humanidade.

domingo, 9 de outubro de 2011

O cinismo de Antístenes, o aluno adolescente e o barril


Prof. Amilcar Bernardi


Os antigos atenienses, pós-socráticos, tinham outro sentido para a palavra cínico. Os cínicos eram seguidores de Antístenes.  Este pregava a supremacia da virtude e a inutilidade das coisas materiais. E como esses seguidores eram indiferentes às coisas materiais, tornavam-se superiores à maioria das pessoas (frágeis porque podiam ser atingidas através de suas posses).  O que importava é a pureza da alma e a liberdade, a não-sujeição a ninguém; muito menos aos desejos.
Diógenes é um cínico famoso. Vivia dentro de um barril e não possuía mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão.  Alexandre Magno um dia perguntou-lhe se ele tinha algum desejo e disse-lhe que, caso tivesse, seu desejo seria satisfeito. Ao que Diógenes respondeu: "Sim, desejo que te afastes da frente do meu sol". Com isto Diógenes queria demonstrar que era mais rico e mais feliz que o grande conquistador. Diógenes tinha tudo o que desejava.
Hoje com alguma curiosidade vejo inúmeros adolescentes tendo uma atitude que me lembra o cinismo. Mera lembrança é claro.
No corredor da escola está o aluno. De nada precisa além de sua roupa, piercing, tatuagem, penteado e sua pasta atopetada de material escolar.  A felicidade está dentro dele mesmo, de nada mais precisa. Quando toca a sirene para o início da aula ele permanece no corredor. Então o professor diz que ele ficará fora da sala de aula. O aluno, na indiferença de quem tudo tem e de quem nada precisa, encolhe os ombros. Seu olhar sereno e o sorriso tranqüilo autorizam o mestre a deixa-lo para fora. Esse jovem nada mais precisa além do MP4, do aparelho nos dentes e da sua sabedoria. Mostra sua superioridade e sua riqueza interna rejeitando a escola.
O “aluno-diógenes” quando interpelado pelo diretor, assim como Carlos Magno interpelou o sábio grego, responde: “Diretor, desejo que te afastes de mim, da minha vida, da minha namorada e da minha felicidade ignorante dos temas acadêmicos”.Tamanha lucidez do aluno-sábio impressiona o diretor, que chama os pais dessa feliz criatura, para que possam, juntos, entender tal filosofia complexa. Mas essa filosofia é por demais difícil para se compreender em um ano só. O aluno então é convocado a repetir o ano letivo para aprofundar suas meditações. Repete de ano inúmeras vezes para ampliar sua felicidade interior e, quem sabe, fazer discípulos. Mas os demais pais, que não possuem condições intelectuais para entender o “aluno-diógenes”, impedem que seus filhos se tornem fiéis discípulos. Solitário, mas feliz, o sábio adolescente segue seu caminho.
Estamos cheios de “alunos-diógenes”. Querem passar a adolescência felizes e auto-suficientes.  Entra ano e sai ano e eles estão lá. Sábios, imperturbáveis e... cínicos (no sentido grego – é claro!). Fico feliz com tal pureza de espírito e largueza de horizontes. Mas também fico um tanto preocupado. Será que ainda nos dias de hoje é possível viver dentro de um barril e não possuir mais do que uma túnica, um cajado e um embornal de pão?
Aluno-diógenes”, é bom lembrares que tal filosofia dura só a adolescência. Depois, o velho barril filosófico vai para a tua garagem ao lado do carro da família que está indo para a praia (com tua esposa e teus dois filhos pequenos). Mas antes de viajar é bom fechares bem a casa que os ladrões estão soltos, ligar o alarme, contratar a firma de segurança. É bom deixares pago a água, a luz e o gás.  Ah! Não esqueças de levar esta crônica para que os teus filhos pequenos leiam... porque um dia eles também serão filósofos adolescentes. Entra ano e sai ano e eles estão lá...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

A terrível experiência na floresta

Achei que conhecia aquela floresta. Muitas vezes por ela andei e acreditava conhecê-la. Coisa de gente jovem e inexperiente, confesso. Porém, ficou a lição: nunca subestime os perigos da floresta. Sempre há surpresas e de cada canto algum animal pode saltar e ferir.
Naquela floresta de palavras, as árvores de sílabas eram altas, quase tapavam o sol. Era difícil guiar-se. Então eu me perdi.  Cachoeiras verbais, enormes, saciaram minha sede, mas o perigo de cair nelas, ser tragado e morrer sem saber nadar, era enorme.  Resolvi, para sair daquela selva perigosa, seguir as águas do rio. Pareceu-me mais fácil.  Mera ilusão! Concordâncias verbais nadavam perigosamente naquelas águas. Mesmo eu ficando nas margens, elas olhavam-me a espera da queda fatal. Era aterrador. Uivos das concordâncias nominais surgiam da selva densa. Fiquei terrificado. Se caísse nas águas sem saber nadar, seria devorado ou afogado. Se optasse por ficar às margens, poderia ser atacado a qualquer segundo, pois não conhecia bem essas concordâncias verbais. Como seriam? Talvez, pelo medo que sentia, fossem criaturas enormes a espera do meu erro. Fatalmente eu iria morrer nos dentes delas.
Já era tarde. Ia anoitecer. Então pensei em fazer uma fogueira para assustar as feras. Percebi que iria ficar a noite na floresta das palavras. Acalmei-me. Respirei fundo. Era só fazer fogo. As feras e insetos fogem do fogo.  Juntei galhos de dicionários já mortos pelo tempo ou derrubados por tempestades gramaticais.  Os ventos sempre derrubam das árvores dicionários, galhos que são úteis aos perdidos. Juntei vários deles e fiz uma estrutura para por fogo.   Após as chamas, fiquei mais aquecido. As trevas da noite estavam rapidamente tomando a floresta.  O medo era terrível. Eu ouvia as acentuações gráficas rastejarem pelo mato. Se fossem venenosos eu estava perdido! Era uma picada só e eu morreria sem ajuda. Tremi ao lembrar-me que nas selvas não existem gramáticos para salvar os incautos perdidos! Era meu fim, com certeza.
Ditongos voavam e picavam minha pele. Os hiatos eram os piores, pois eram maiores. Qual repelente seria forte o suficiente para afastá-los? Nenhum! Minha pele ardia, mas eu era jovem e podia suportar. Ao fundo da paisagem negra da noite, tritongos rugiam. Creio que caçavam a noite, nem sei. Eu sabia que, quando o dia amanhecesse, alguém viria salvar-me! Muitas pessoas sabiam que eu adorava perambular pela selva de palavras. Com certeza eu seria salvo!
O frio era muito intenso.  Ainda bem que eu havia juntado alguns morfemas gostosos, eram frutinhas de aparência horrorosa, mas após agente se acostumar, ficam aceitáveis ao paladar. Não podia negar que os morfemas são úteis nessa floresta terrível! Vejam bem, é bom ter cuidado. As desinências são frutinhas que podem provocar dor de barriga, e como todos sabem, na mata a desidratação pode ser fatal!  É preciso conhecer bem a floresta das palavras para sobreviver. Por isso que a maioria das pessoas não sobrevivem nela.
O sono era tão intenso que amontoei adjetivos para travesseiros. Pedaços de substantivos cobriam-me. Sem fome e um pouco aquecido, iria sobreviver ao medo e aos animais perigosos. Com muita sorte os advérbios fatais e preposições assassinas nem perceberiam que eu estava ali, indefeso. Eu sou um sujeito de sorte, sempre fui. Já tinha sobrevivido muitas vezes naquela floresta complexa e perigosa. Eu era forte, iria ficar vivo e contar para os outros minha experiência!
Acordei ouvindo gritos! Haviam me encontrado! Quanta alegria! Eram corajosos policiais da guarda sintática! Armados com períodos simples, estavam seguros contra os terrores da selva. Finalmente estava feliz. Finalmente sairia bem da minha aventura. Aprendi muito. Quando eu voltar, e sempre voltarei, estarei mais preparado. Nenhum adjunto adnominal ou complemento verbal fará com que eu desista da selva.
Ufa! Estou cansado.  Mas aguardem-me! Logo terei mais aventuras para contar.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Obviedades


Fiquei com vontade de falar coisas óbvias, então escreverei infantilidades. Vou falar de árvore e de padaria.

Uma maneira eficiente, porém, trabalhosa de matar árvores, é impedir que suas raízes se alimentem. Demora um tempão. É preciso alguns cuidados para impedir que as raízes achem nutrientes, mas com certeza ela morrerá silenciosamente.  Secará, cairão as folhas, o verde desaparecerá até que morra totalmente.

Outra obviedade: se eu tenho uma padaria, fico muito preocupado com os cursos de formação de padeiros. Porque se as pessoas não querem fazer mais pães ou se fizerem pães ruins, como vou sobreviver? Eu vivo de pães! Uma sociedade que não sabe fazer pães, está fadada a não ter cafés da manhã gostosos! Ela começará a reclamar da ausência dos pães. E o pior: não se lembrará de se importar com a qualidade ou com a ausência dos padeiros! 

 Credo! Estes dois parágrafos são óbvios demais! Aí está a chave da questão: a obviedade!

          Coisas evidentes muitas vezes tornam-se invisíveis por parecerem insignificantes. As pessoas não estão vendo o que está acontecendo ante nossos olhos. Se a educação fosse uma árvore, os educadores seriam as raízes.  Fácil entender que a educação formal é feita de professores. Então, basta olharmos para o número destes profissionais e fica mais claro ainda o problema. Cada vez temos menos gente querendo ser professor. As universidades não conseguem captar candidatos nesta área da mesma maneira que outras áreas captam. É só ver os números. Se a educação fosse árvore, estaria morrendo pelas raízes, de fome. Se a escola fosse uma padaria, faltariam padeiros. E mais, pouca gente desejaria fazer o curso de padeiro, mesmo querendo pães muito gostosos!

 A sociedade cobra muitas coisas. Porém, esquece de cobrar um tratamento digno aos professores. As pessoas até clamam por uma educação melhor e não lembram dos educadores. Não podemos ser hipócritas, é preciso aumentar os salários como é preciso aumentar o número de vagas para os alunos nas escolas públicas.

 É urgente dar as condições salariais ao educador para que possa ele mesmo qualificar-se. Qualificar-se no que quiser! O professor não quer nada de graça. Ele quer dignidade.

   Continuo dizendo obviedades, invisibilidades.

Temo por meus netos. Quem serão seus professores? Haverá professores? Qual a qualidade das vivências culturais dos que se candidatarão à docência?  As respostas são óbvias também, mas não quero escreve-las. Vou deixa-las doendo no meu peito de professor.