quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

A liberdade de expressão e a "mão invisível" do mercado


Sob o ponto de vista do liberalismo, a liberdade é a ausência de contenção, é o livre fluir
do mercado. A história econômica nos apresenta a expressão Laissez-faire, que simboliza principalmente o ideal da liberdade econômica. No liberalismo, se há algum limite às liberdades, este só é tolerável se vier a favor da manutenção da propriedade privada.

Lendo Stuart Mill encontramos a ideia da “mão invisível do mercado”.

Sob o ponto de vista do capitalismo concorrencial, a "mão invisível do mercado" dá os limites ao próprio mercado, sem impedir a liberdade dos indivíduos. Isso por que no mercado quando todos podem tudo, tendo um poder absoluto, acabam os agentes por se (auto)limitarem. Stuart Mill oferece um exemplo para o entendimento da mão invisível. Imaginemos que queremos comer pão no café da manhã. Para nos satisfazer, o padeiro pode fazer o pão do jeito que quiser e pôr o preço que quiser, pois é livre. O outro padeiro do bairro, também faz do jeito que quer seu pão, e livremente impõe seu preço. Entretanto, o segundo padeiro pode fazê-lo melhor e por um preço menor. Então, um padeiro será limitado pelo outro. Afinal, escolheríamos o pão de melhor qualidade pelo menor preço, ignorando a opção desvantajosa. A lei que rege essa situação é onipresente, implacável e invisível. Simplesmente essa lei existe e se impõe;

Queremos sempre o que é melhor e mais vantajoso e rejeitamos o contrário disso.

No contexto do (neo)liberalismo, como fica a liberdade de expressão? Estaria sujeita também a “mão invisível” da concorrência, os sujeitos que querem livremente se expressar?

Percebamos as seguintes questões sob o ponto de vista da “mão invisível”:

Cada cidadão pode livremente se expressar, sendo limitado apenas pela igual liberdade do outro? Numa sociedade ideal, onde cem por cento das pessoas são cem por cento livres para dizerem o que querem dizer; as pessoas poderiam escolher os melhores argumentos negando os piores? E isso da mesma forma como escolhemos os pães melhores e ignoramos os piores? Podemos discernir os argumentos bons e baratos dos ruins e caros? Seria possível, nessa sociedade ideal, “arruinar” (por não ter consumidores) os produtores de maus argumentos? Sempre a mesma resposta: não!

Numa sociedade utópica de pessoas cem por cento livres para se expressar, haverá o risco dos sujeitos escolherem os “melhores” argumentos somente segundo seus gostos pessoais. Pães e escolhas a gosto do freguês. Então, critérios como coerência, verossimilhança e cientificidade correriam o sério risco de serem preteridos. É um perigo sério. É bem mais fácil o gosto do dia a dia do que o gosto mais refinado. O refinamento exige reflexão, esforço, custo pessoal e intencionalidade clara.

Num mundo de liberdade de expressão absoluta, o alto preço para a qualidade dos argumentos é a reflexão e o cuidado no consumo das verdades ditas.

Na nossa sociedade que assiste o Big Brother e o discute com afinco; é possível a liberdade com qualidade para decidir/escolher as melhores opiniões? Não. A liberdade está viciada. Como o discurso apurado e denso não é palatável de imediato, provavelmente será preterido por discursos mais rasos e fáceis. Só é verdadeiramente livre a pessoa acostumada à reflexão profunda sobre temas complexos. 

Há o risco de acreditar que ser livre para se expressar, é uma espécie de banalização do relativismo niilista.

Num ambiente hipotético de liberdade extrema, as pessoas tenderão (não é uma fatalidade, mas é tendência!) a aceitar as falas desairosas sobre seus desafetos e a rejeitá-las se forem sobre seus amores. Acrescente-se que corriqueiramente as pessoas escolhem o que já conhecem, saborearam e o que já gostam. Saborear gostos diferentes não é fácil. Experimentar sabores indigestos, pior ainda! É preciso esforço.

Portanto, a liberdade total de expressão é um paradoxo num ambiente de livre concorrência das falas.

Há muita oferta de expressões livres nas democracias. A oferta de ideias é tanta que não é possível aferir a qualidade. Se fosse possível, as melhores seriam preferidas e as demais, preteridas. Como não é possível, não funciona a “mão invisível do mercado”. É preciso algo “acima” dessa “mão”.

Podemos ainda imaginar a dificuldade de um consenso mínimo sobre o que é uma expressão de qualidade (boa/má). Sem consensos, escolhas pessoais sempre permanecessem. Sucesso do relativismo, fracasso nas escolhas.

No mundo real do neoliberalismo econômico, as sabotagens na livre concorrência são um fato. Não apenas um risco, mas uma realidade. Fraudes, ilegalidades de toda ordem, monopólios, oligopólios e manipulações fiscais. A concorrência sempre nasce viciada. O desejo de lucro e vantagens são irrefreáveis, de tal forma que invalidam a concorrência leal. Como estamos fazendo um paralelo entre a liberdade concorrencial no âmbito econômico e a "liberdade concorrencial" no direito de expressão, pode-se imaginar que os vícios em ambas as esferas são similares. As pessoas se expressam querendo sempre ganhar o jogo dos argumentos livres. Querem sobrepujar os demais, fazendo prevalecer (por qualquer meio) o que expressam sobre as demais expressões livres. 

Então, é de suma importância a educação, o estímulo à reflexão democrática e a vivência da partilha fraterna. Estes elementos estão hierarquicamente acima do jogo da livre concorrência. Eles têm outra dimensão. São elementos de cunho ético; orientadores, portanto.

Posso afirmar que liberdade extrema sem orientação ética é cativeiro: ficamos presos em nós mesmos. A livre expressão sem contenções éticas, é uma forma de impedir a liberdade para se expressar. A liberdade pura, sem intenção fraterna, sem intenção de partilha, é egoística, é imperialista e é enganosa.

Liberdade de expressão, comunidade e fraternidade são elementos inseparáveis. Este tripé é em tudo diferente do liberalismo clássico e do neoliberalismo. Quanto mais ética é a comunidade que quer se comunicar, mais verdadeiramente livre é. Simples assim.

A livre concorrência absoluta, em qualquer âmbito, impede as liberdades! Paradoxal: são principalmente as limitações éticas que fomentam a fraternidade que possibilita a expressão na forma de diálogo. Por consequência, permitem que sejamos cada vez mais livres, mesmo que nunca em cem por cento.

domingo, 4 de fevereiro de 2018

O Assédio Moral no Trabalho

                                    


      O atualmente chamado Assédio Moral no trabalho está, aos poucos, sendo discutido não só nos tribunais, mas pela sociedade. Cumpre dizer que é um fenômeno antigo. Surgiu com o advento das fábricas e da figura do assalariado. Tornou-se possível o assédio moral, quando se tornou também possível uma pessoa se sentir superior a outra na luta pela sobrevivência. Superioridade artificial, consentida e autorizada pela sociedade e pelo Direito. Inúmeras vezes, a própria vítima acredita ser natural os maus-tratos e excessos sofridos na empresa.  Mas a sociedade e o Direito evoluem.
    
      O assédio no ambiente laboral se configura por ações ou omissões, intencionais ou não, que causem sofrimento físico ou psicológico ao trabalhador. Para se configurar, é preciso que haja alguma constância (regularidade) nessa prática hostil. O assediado sente o ambiente de trabalho como um espaço que o intimida. Por não poder evitar, acaba por sofrer danos morais, psicológicos ou de saúde. Um exemplo de intimidação não intencional ocorre quando as pessoas trabalham com vendas. Elas podem ser assediadas para que vendam mais. Este assédio não quer o sofrimento pessoal de um trabalhador específico. Quer apenas o atingimento de metas. Apesar de ser um “assédio impessoal”, merece igual repressão.
                             
      Hoje, como um mantra, todos exaltamos repetidamente a importância do respeito à dignidade humana. Esta exaltação é oriunda de um pensamento “politicamente correto”, no sentido de um modismo. Digo modismo porque “falar é fácil, fazer é difícil”. E acrescento: no ambiente competitivo laboral é mais difícil ainda!
    
      O assédio moral é perverso, pois está justificado no contexto da crença nacional na meritocracia. A tese é: os melhores se esforçam (sempre) mais. Entretanto, a exigência anormal de esforços, ou apenas a prática de fazer com o que o outro sofra e perca a competição por postos na hierarquia; é um mal terrível. Seja o assédio horizontal (entre iguais), seja vertical (entre superior e subordinado), é sempre abominável.
    
      Hoje não é mais possível ignorar que todo o ser humano é um ser especial, único, com sua dignidade inviolável. Como consequência, quem pratica o assédio conscientemente, fará em surdina, de maneira maliciosa. Reside aqui a dificuldade de fazer provas.
    
      A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) no artigo XXII nos ensina que: Todo homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego. Ensina também que todo homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.
    
      É a história tentando justificar a necessidade de uma mudança real de conduta nos ambientes de trabalho.
    
      Mais que o ensinamento da DUDH, atualmente temos como obrigação constitucional o respeito e o cuidado com a dignidade humana e os valores sociais do trabalho (CF, art. 1°, III e IV). Podemos acrescentar o art. 6º da nossa magna carta, quando enfatiza como direitos sociais o trabalho e a segurança. E ainda, no seu artigo 7º - XXVI diz:  seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa.
    
      Os maus-tratos é, por similitude, equiparado ao acidente de trabalho e, portanto, deve ser de igual forma evitado. Convém ainda lembrar que o Decreto nº 1.254 de 29 de setembro de 1994, que promulga a Convenção nº 155, da Organização Internacional do Trabalho, sobre Segurança e Saúde dos Trabalhadores e o Meio Ambiente de Trabalho, afirma no art. 3º na alínea e:  o termo "saúde", com relação ao trabalho, abrange não só a ausência de afecção ou de doenças, mas também os elementos físicos e mentais que afetam a saúde e estão diretamente relacionados com a segurança e a higiene no trabalho. Cabe ainda o Art. 5º da nossa Constituição, que afirma no inciso V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem.
    
      A forma de tratar e entender a relação empregador/empregado, após a Revolução Industrial, mudou tanto que não pode mais ser encarada como sendo a mesma. Embora a realidade desta mudança, é possível encontrar amiúde, empregadores e chefias que tentam continuar no século XVIII e XIX. Daí vem o Assédio Moral.
    
      Contra esse pensamento antiquado, as leis vêm alertando para os inúmeros cuidados com o trabalhador. Nesse sentido, podemos elencar ainda a Consolidação das Leis do Trabalho no artigo art.483:
      O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
      a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos bons costumes, ou alheios ao contrato;
      b) for tratado pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor excessivo;
      (...)
    
      Impossível não citar os seguintes artigos do CC:
      Artigo 186.  Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
      Art. 187.Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
      Art. 927. Aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
    
      O dano a ser “reparado” é, na maioria das vezes, moral. Portanto, imaterial. A reparação em pecúnia tem a pretensão de atenuar, minorar as consequências da lesão espiritual sofrida (quando não ocorrer lesão física, claro). Não há como antecipadamente prever o valor em pecúnia, pois, como já foi dito, o dano, geralmente, ocorre à honra, à intimidade, à imagem, à saúde, à própria dignidade da pessoa humana ou a sua moral. Os valores da reparação não visam apenas a atender às necessidades da vítima. Visam também educar “pelo bolso” os assediadores.
    
      Para não perdemos o sentido histórico que aqui damos, convém lembrar que o fundamento legal que sustenta o direito à dignidade no trabalho, também se fundamenta na Bill of rights de 1689, na Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, na incisiva Encíclica Rerun Novarum de 1891, na Declaração Universal dos Direitos Humanos (já citada) e na Convenção Americana dos Direitos Humanos de 1969.
    
      Apesar de todo o atual conhecimento sobre o tema, e dos esclarecimentos históricos sobre o respeito à dignidade do homem laborativo, ainda há inúmeras ocorrências deste tipo de violência.
    
      O terror psicológico imposto ao trabalhador, no contexto atual de escassez de empregos, é insuportável a ele. A vida dele realmente depende do seu trabalho. Aos olhos do Direito do Trabalho, tais excessos são intoleráveis. Entretanto, o assédio no ambiente laboral está longe de desaparecer. Perversamente, quanto mais o trabalho é necessário à sobrevivência e quanto mais é escasso, muito mais o terrorismo psicológico prospera. É a lei da oferta e da procura. Quanto maior a oferta de trabalhadores, maior as exigências para eles se manterem na atividade remunerada.
    
      Se no Romantismo o mal do século era o pessimismo suicida, apatia moral e melancolia difusa; talvez o assédio moral seja o mal du siècle contemporâneo.
    


quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O nada saber nada quer nem nada pergunta



O homem se caracteriza pelo existir consciente. Sendo corpo e mente, existir significa permanecer internamente e se projetar no ambiente externo. Nossa pele é mera membrana. Ela nos dá a ilusão de limitar o dentro e o fora de nossa consciência.  Tendemos naturalmente a sair do interior: é inevitável. Uma das maneiras conscientes de se pôr para fora do corpo, é formular perguntas. Toda pergunta leva o Eu para passear fora do corpo.

A qualidade do perguntar (de pôr-se para fora) é diretamente proporcional a história vivencial do sujeito que formula questões. O que vivemos orienta o que queremos saber a mais. O que já sei determina a amplitude do perguntar. Portanto, o que sabemos de antemão permite e (também) limita “o querer saber mais”. Todo o perguntar tem uma pré-condição e uma pré-direção, ou seja, uma orientação condicionada pela vivência do sujeito que propõe perguntas.

O nada saber nada quer nem nada pergunta.

Dependendo das vivências que temos, o perguntar tende ao infinito (em quantidade e qualidade). Em tese, quanto mais eu sei, mais posso perguntar e entender a resposta. O inverso é verdadeiro. Meus estudos (meus interesses e valores) se orientam na área das ciências humanas. Então, pouco sei sobre física quântica. Por consequência, pergunto quase nada sobre ela. E quando pergunto, um tanto das respostas não entendo.

Nossa vida intelectual (interna), quanto mais se amplia, mais busca seus alimentos no exterior.

Pode haver anomalias nesse processo de sair de si para buscar o externo. Isso acontece quando o perguntar busca somente respostas que ratifiquem nosso pré-conhecimento. Há a tentativa de perpetuá-lo, ignorando o que pode contradizê-lo. Nesse caso, saímos de nós na esperança de voltarmos iguais.

Nossos pré-conhecimentos alojam juízos. Estes são valorizados a ponto de orientar “o querer saber mais”. Corremos o risco de ficarmos submissos às informações já tidas como certas e inquestionáveis. Tanto o cientista quanto a pessoa comum, estão sujeitas a este hipertrofismo dos pré-conhecimentos valorizados.

Podemos avaliar nosso interior na tentativa de conhece-lo melhor. Talvez até prepara-lo para sua próxima investida mais livre no mundo exterior. Para isso, é imperioso ao nosso Eu perguntar pelas perguntas, pelas suas pré-orientações.

O perguntar interno (autoquestionamento) é interessante. Algumas dicas de reflexões possíveis:

Por que pergunto o que pergunto?
         Por que quero inspecionar isso e não aquilo?
         Perguntar o que pergunto me traz coisas novas?
                                                                                                           
Questionar a direção das nossas perguntas nos leva ao pré-saber que as determina. O processo tem duas mãos: o que sei determina a pergunta, a pergunta indica o que sei. Sou tanto mais livre para aprender, quanto mais tenho consciência do que internamente me prende.

As perguntas que acrescentam e as que nos contradizem, são as melhores sempre.

Num drástico resumo: as pessoas devem saber pelo menos um pouco para perguntarem bastante. Perguntando bastante saberão muito. Sabendo muito, perguntarão mais...

 O que difere o homem filosófico do homem do senso comum? Sua capacidade de perguntar sobre suas perguntas ampliando a consciência.