segunda-feira, 30 de abril de 2018

Credibilidade e confiança: inseparáveis.







A confiança tem a ver com a estabilidade. O sujeito na sua história pessoal, sempre agiu da mesma forma. Presumivelmente, amanhã e depois agirá da mesma maneira.  A história da pessoa ou de uma instituição, conferem razoabilidade. Por consequência, propiciam a esperança de que as mudanças (se houver) serão ponderadas, processuais e previsíveis.  As autoridades públicas, notadamente as do judiciário, devem ser assim: previsíveis em suas condutas. Mais do que a mulher de Cezar, devem ser e aparentar ser. Duas faces da mesma moeda: ser e aparentar ser. A confiança vem com a experiência. O tempo faz com que eu confie. É um namoro, uma amizade delicada. Não basta apenas obter a confiança, mas mantê-la. Um deslize, uma mentira, uma oscilação e pronto, a confiança se fragiliza. Minha mãe dizia (e diz): é como um prato, quando quebra, mesmo colado, fica a rachadura.



A credibilidade me lembra ter crédito: ter disponível para meu uso um valor maior do que eu de fato possuo. A pessoa agiu sempre de tal forma, que acumulou confiança. Pode até gastar um tanto a mais, pois tem crédito moral, tem bastante ainda em depósito. Então, quando alguém diz algo depreciativo em relação a quem tem credibilidade, o ouvinte logo diz: “Não acredito. O fulano nunca foi assim. Mesmo que haja fortes indícios, não creio!” A pessoa que tem credibilidade, tem sempre o benefício da dúvida a seu favor. In dubio pro credibilidade!



Os dois parágrafos anteriores justificam a união ética entre confiança e credibilidade.  Em ambos os casos, a história no tempo da pessoa ou da instituição, induzem às demais pessoas a esperarem uma conduta mais ou menos linear: quem foi “do bem” até hoje, é esperável que amanhã também o seja. Mesmo que as verdades fáticas oscilem, mesmo que as ciências descubram a cada momento coisas novas desmentindo verdades; a crença pessoal na importância da conduta ética dá certa previsibilidade às ações futuras. 

Por consequência, o descompromisso com a reflexão ética, resulta num comportamento errante. Agir de forma egoísta, de acordo com a conveniência do momento, não cria uma história pessoal confiável. Da mesma forma, a instituição pública que age de acordo com os ventos da política eventual não enseja confiança.  Nada nos faz mais moralmente previsíveis do que o repensar contínuo sobre a ética.  Aristóteles, de um lado afirmava, que o bom hábito nos faria propensos a sermos bons. Por outro lado, Kant nos alertava que o que importa é agir de forma que nosso agir possa ser um agir universalizável.



O que os dois filósofos tinham em comum? A preocupação constante com a reflexão sobre o certo e o errado. E fico feliz em saber que a história nos conta que ambos, sempre e sempre, foram virtuosos e previsíveis em seu desejo de serem corretos.



Credibilidade e confiança: irmãos. Penso que apesar da realidade demonstrar fartamente que nos equivocamos amiúde, só seremos dignos da credibilidade e da confiança quando buscarmos ter certeza que procuramos fazer o correto. E não uma vez ou duas. Mas, como disse antes, que a história da nossa vida ou das instituições públicas seja a vontade de fazer o correto... mesmo que não saibamos exatamente o que seja.

domingo, 22 de abril de 2018

Aos colegas do Direito, minha homenagem.


 Sobre a academia, hoplitas e rapinadores.




Gosto muito da imagem do hoplita[1] grego. Forte e pronto para a guerra. Envolto em armadura de couro, protegido por armas pesadas. Eram o tanque de guerra da pré-história das guerras. Temível! Irmanado com seus iguais, se jogava às mais insanas batalhas. Algo colossal.



Quando saímos das academias, sentimo-nos como os hoplitas. Armados com princípios éticos potentes e luzidios recém-desenvolvidos para serem empunhados.  Como os guerreiros gregos, os acadêmicos ao se formarem saem para as grandes batalhas. São inúmeras. Mas a maioria não são colossais. São escaramuças. São rápidas e mortais. O ambiente é móvel e mutável. As batalhas hoje tendem a serem ganhas por ardis e espertezas.  Parece não ser possível a luta leve para guerreiros tão pesados. Blindados. A técnica atual é a da blitzkrieg! [2]



Fora da academia a moralidade nela desenvolvida, pesa. Princípios elaborados para blindar o aprendiz, hoje parecem ser pesos mortos. Fora do ambiente acadêmico, a batalha parece ser para os rápidos.  A esperteza se coloca como vencedora das certezas lineares. Os aprendizes blindados são como vitimas fáceis nas mãos dos emboscadores. Estes armadilham, argumentam rápido demais. Os hoplitas são lentos nas suas armaduras. Aguentam os impactos por algum tempo. Mas a velocidade e as mudanças cada vez mais rápidas não perdoam.  Inúmeros guerreiros caem emboscados.



Num primeiro momento, as táticas se sobrepõem à ética.  A malícia armadilha quem reflete.  O escudo dos princípios da justiça pesa nas mãos. É mais rápida a flecha treda envenenada por argumentos falaciosos. A falácia é mais fatal que os silogismos válidos com premissas verdadeiras!



A academia resiste. Quer combatentes éticos, fortes e coerentes.  Prepara os guerreiros para as grandes lutas. Simula os ambientes possíveis das guerras estrangeiras ao ambiente escolar.  Escudam seus hoplitas.  Forjam espadas éticas duras, inflexíveis.  Delimitam horizontes éticos. As viseiras de couro impedem ao combatente ver opções indignas do bom combate.



Então o guerreiro sai pronto para o embate. Mas tudo é muito diferente. Ele tem armas possantes, mas na maioria das vezes o inimigo é pequeno e rápido.  Belisca e não morde. Envenena mas não dilacera. Então o combatente fica desnorteado. A moralidade parece pesar demais. Os maliciosos são mais rápidos e não tem nada a perder. Não precisam de justificativas nem da justiça.  Agem por cobiça e por instintos.



Mas, por que os hoplitas são lembrados e os demais não?



A história rejeita os emboscadores.  As medalhas são grandes demais para os peitos pequenos. O embuste, a fraude, a rapina rápida e a emboscada são inglórios. Os moralmente pequenos não lutam os grandes confrontos.  As academias produzem grandes guerreiros para espetaculares batalhas. Não querem menos que isso.



Lembro aos inglórios, rápidos e vorazes, que brigam por migalhas e despojos: a história é seletiva por querer heróis de espírito. A história ama os espiritualmente fortes.  Os livros e os louvores pertencem aos hoplitas éticos.   Os ventos que ventam para os heroicos são tempestades para os ratos. Ratos não foram feitos para serem lembrados. Existem apenas para se multiplicarem e desaparecerem.



Os hoplitas vivem para mudar as sociedades. Existem para fazerem história, criarem teorias e novos princípios éticos. As almas desses hoplitas voltam para serem ensinados nas academias. Voltam machucados e heróis. Voltam e são ensinados aos jovens. Agora, servem para blindar os novos guerreiros. A história não pode parar. Ela está à espera de novos guerreiros para forjarem novos tempos. 



Reflitam: rapinadores, ratos, vendilhões e guerrilheiros não sabem nem podem fazer história. 





[1] [1] Hoplita era o soldado de infantaria da Grécia clássica. Seus componentes eram cidadãos treinados para serem soldados. No mundo grego, os Hoplitas eram a melhor infantaria. Dominaram os combates por séculos.

[2] O Blitzkrieg (guerra-relâmpago): Tática militar alemã que consistia em atacar rapidamente, sem chances de revide. Tinha como tática: a surpresa, a velocidade e a força.

sexta-feira, 20 de abril de 2018

A ética e a ética processual no CPC


Para iniciarmos o artigo, convém a reflexão sobre a ética em geral, ou a ética no sentido filosófico. Ela não é a mesma coisa que a moral.  A moral é o sentimento que temos em relação ao que nos afeta. Na verdade, temos opiniões valorativas sobre tudo.  O peso aqui é dado à expressão opinião. Ou seja, o senso comum parece abranger sob o aspecto do certo e do errado, do bem e do mal, toda a realidade que nos cerca.   Neste nível, apoiamos nossas concepções nas nossas experiências culturais, e nas nossas experiências de prazer e desprazer ao percebermos os acontecimentos diários.  A moral, portanto, não pretende, sequer necessita, de um fundamento racional.

Vários casos de crimes televisionados provocam comoção popular. Pessoas gritam por justiça, justiceiros pululam desejando a punição imediata dos “culpados”. Nada é processual, tudo é imediato, à flor da pele.  Os jornalistas comentam identificando a pessoa “imoral” com o veredito de  culpada. Os que estão em locais de “má reputação” são imediatamente suspeitos, e os defensores dos suspeitos são qualificados como “dos direitos humanos”. Estes últimos são percebidos como defensores dos bandidos, dos maus e da ralé.

Entretanto, basta um pouco de reflexão para percebermos que as conclusões a que o senso comum chega, não têm fundamentos lógicos (são falaciosos), não respeitam a sequencia causa-efeito, muito menos seguem a linearidade mínima para a reflexão plausível. A moral do senso comum salta argumentos, escolhe a faceta que acredita, evita o que não concorda. Faz escolhas específicas de acordo com suas crenças, e então fulmina qualquer esperança de imparcialidade ao dar seu veredito opinativo/definitivo.

Numa mesa em frente a uma taça de café num domingo, argumentando entre amigos,  não há problemas em julgar moralmente  (pois não há consequências no plano fático). É uma pratica culturalmente aceita e é milenar. Até por que, usarmos a razão sempre seria cansativo demais. Provavelmente algo impossível. Termos opinião e sermos livres para expressa-la não é algo ruim. O problema está quando o fazemos em momentos em que podemos ser tomados a sério, podendo provocar consequências negativas para alguém.



Não é possível levarmos uma vida normal sem que estejamos alicerçados em valores e convenções irrefletidas, embasadas na vivência cultural, nos liames afetivos de uma comunidade. A identificação rápida do bem e do mal sob o ponto de vista do senso comum, nos garante uma vida previsível e similar às demais vidas que nos cercam.  Daí vem certa segurança e harmonia que nos permitem viver em sociedade.



Diferentemente, a ética não permite que nos mantenhamos no nível da moral. A ética é a ciência da moral. Com isso, quero dizer que o senso comum passa a ser aferido por uma reflexão minuciosa.  Quando a razão se debruça sobre a opinião, a devoção a determinados valores passam a ser criticados de maneira dura. Nem tudo o que as pessoas creem são válidos para as demais pessoas. Todo o julgamento, no momento da reflexão ética, não é aceito de imediato, mas processualmente no tempo. Terá início, meio e fim.  E cada momento está sujeito a suspeições, interrupções para reflexões e a especiais questionamentos sobre prejuízos e contradições.

Quando nos submetemos à reflexão ética, nossos valores morais, nossos desejos de estarmos certos, serão educados e refinados.  Temos que educar nossa consciência, elevando-a acima das nossas paixões, fazendo-a refletir sobre nossa vontade e, principalmente, refletir sobre os critérios que usamos para julgar o certo e o errado. De certa forma, avaliar o outro é avaliar a nós mesmos, pois são nossos valores que julgam.  O meu julgamento espelha quem eu sou.  De certa forma, nesse contexto, faz sentido dizer que só damos o que temos, ou melhor: só julgamos com o que temos em nós para julgar.

A reflexão ética converge para o que chamamos de confiança. Essa confiança ocorre entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado.

Reduzindo a hesitação nas relações sociais, a confiança atua como um mecanismo protetor hábil a evitar o caos e a desordem. Serve para conter a insegurança por meio da filtragem e organização do grandioso volume de informação complexa que recebemos. A confiança de uma pessoa na concretização das suas próprias expectativas é, portanto, um fator elementar da vida social. Ela vai viabilizar as relações sociais por meio de uma estabilidade que é alcançada pela existência de expectativas recíprocas. Com ela, o passado se estende para o futuro e o potencial de modificação inesperada das relações sociais é reduzido, o que torna possível o convívio entre os seres humanos. [1]



A segurança e a estabilidade num estado de direito é fundamental. As pessoas precisam confiar umas nas outras. Ou seja, a história da pessoa X justifica eu confiar que amanhã ela se comportará como sempre se comportou. As mudanças são mínimas e se ocorrem, espera-se que ocorram num intervalo de tempo razoável. Há, eu diria, um processo de transformação processual. Na mudança, podemos identificar razoavelmente os motivos da transformação. Em relação ao Estado (na sua relação com  as pessoas)  a questão é mais complexa. Entretanto, em relação a ele, os cidadãos devem esperar coerência e mudanças na esteira do tempo (nunca algo imotivado e instantâneo).  A previsibilidade e a confiança no Estado são, portanto, essenciais. A reflexão ética é fundamental para mantermos a estabilidade, já que a moral do senso comum não consegue faze-lo.



O filósofo moderno Thomas Hobbes, encontrou uma solução estranhável para nós contemporâneos. Como, segundo Hobbes, somos maus e egoístas, somente nos manteríamos em sociedade e confiaríamos no outro, em função do Leviatã. O Leviatã representa o príncipe, o Estado, com poderes absolutos. O medo, por consequência, faria com que o povo se mantivesse cordato em relação às leis. Ninguém mataria por medo do estado vingar o crime cometido, talvez matando o assassino. Ninguém faria o mal com medo do mal que sobre ele se abateria através da punição estatal. O príncipe pode tudo, convém teme-lo, portanto. Não haveria processos nem direitos. O que haveria é a certeza da punição exemplar e, com certeza, sem o respeito ao princípio da proporcionalidade.



Na verdade, Hobbes não defende propriamente a monarquia absolutista, baseado nas teorias tradicionais do direito divino dos reis, mais sim a ideia de que o poder, para ser eficaz, deve ser exercido de forma absoluta. Este poder absoluto resulta, no entanto, da transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome deste contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do soberano. É nesse sentido que Hobbes é um contratualista – a sociedade civil organizada resulta de um pacto entre os indivíduos – sem ser um liberal, já que defende o poder absoluto, poder considerado legítimo enquanto assegura a paz civil.  É a esse soberano dado todo o traço poderoso que Hobbes denomina “Leviatã”, recorrendo a um nome de um monstro bíblico. [2]



A evolução da ciência jurídica, evidentemente, não pode aceitar em nome da paz social, a preponderância do Estado sobre o indivíduo através medo, pela dor e pela independência das decisões do príncipe em relação aos procedimentos legais.  A história dos homens em sociedade, fez com que a justiça do Estado passasse a se materializar no processo racional dos julgamentos. A confiança das pessoas entre si e entre o Estado nas questões de litígio, passam a se basear na ideia de um processo justo, racional e isento.



Podemos perceber que a ética avança sobre as concepções de justiça e, por consequência, sobre os procedimentos durante os julgamentos e sobre os limites das condenações. O processo para ser justo, passa a seguir princípios que o orienta internamente (quando os valores éticos se tornam normas do processo) ou externamente (pelos princípios éticos  constitucionais e internacionais).



O Código de processo civil segue, portanto, princípios éticos.  Um dos pilares valorativos do processo é o dever de boa-fé entre todos os envolvidos. No art 77 do CPC surge a expressão “dever” (de boa-fé), indicando o caráter valorativo. Estes deveres apontam para a necessidade das partes, seus advogados e o Ministério público serem probos e leais (em relação ao processo). Pretende-se com essa valoração conduzir os participantes a agirem segundo a verdade, a fundamentarem de maneira crível suas pretensões, a não produzir provas protelatórias ou inúteis. As partes teriam, portanto, uma credibilidade ética.



Com a expressão boa-fé,  o legislador quer se contrapor aos que conduzem seus procedimentos durante o processo com má intenção, com interpretações deturpadas das leis ou que ajam de maneira antiética.  Não são bem–vindas as atitudes que desarmonizam o ambiente processual. Inclusive podendo o litigante de má-fé, estar impedindo o direito a ampla defesa e ao contraditório da outra parte. O artigo 80 do CPC não deixa dúvidas quanto a esses impedimentos. Nele lê-se:




Considera-se litigante de má-fé aquele que:

 I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.




A referência ética que perpassa o CPC enaltece a dignidade humana, inclusive impede o uso de expressões ofensivas. Ora, a cordialidade, o respeito à pessoa e a necessidade de cooperação não coexistem com a violência, mesmo que verbal. O artigo 88 refere in verbs:



É vedada às partes, à seus procuradores, aos juízes, aos membros do ministério público e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.



Mas, não podemos esquecer que na realidade:


O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz imerso, na busca por otimização numérica de seus julgados, e as partes (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito.  Esta patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar.[3]



O valor que norteia o processo não é mais o do litígio quase beligerante. A imagem de advogados gladiadores, golpeando com suas espadas verbais, não é mais condizente com o ideal ético do CPC.  Mesmo as partes sendo opostas em relação às suas pretensões, e o juiz sendo o mediador estatal poderoso, todos estão juntos sob a égide do “mesmo” judiciário e do mesmo Estado: são eles (judiciário e Estado), queiramos ou não, os que garantem a estabilidade nas relações sociais. Então, quanto mais o espírito for de colaboração, mais a ênfase na harmonização se dá. Mesmo que haja sempre um vitorioso e um não vitorioso, as relações sociais continuam e o judiciário também. Estas afirmações estão expilicitadas no art. 1º do CPC, onde se lê:



Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 



O respeito do juiz pelos advogados e seus clientes, seu incentivo ao diálogo e a transparência na relação com as partes, é explicitada no artigo 10 do código já citado:



O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.



A tendência  é, sempre, a mitigação dos litígios. Esta intenção fica clara no ideal de autocomposição.  O artigo 190 do CPC nos diz:



Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.



Percebamos que a beligerância, de certa forma, é amenizada pela possibilidade aqui descrita.  A mesma linha de pensamento segue o artigo 3º do mesmo diploma. Acrescento na íntegra o caput do Art. 334 do mesmo código:



Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.



Conclui-se em sequência que os princípios éticos estão fortemente presentes, se irradiando por todo o Código de Processo Civil. Evidentemente que não é por acaso, afinal, a Constituição Federal de 1988 predispõe todo o ordenamento jurídico do país a uma exegese democrática e humana das leis, com apelo pela participação ética de todos. Inclusive, e principalmente, das autoridades que representam o Estado.



[1] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. RJ. Impetus, 2009. Pág.13.
[2] Marcondes, Danilo. Iniciação à Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgeinstein. 8ª edição. RJ, Jorge Zahar. 2004. Pág. 198
[3]  Júnior, Humberto Theodoro – e outros. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª edição RJ. Editora Forense. 2015. Pág. 87.










domingo, 8 de abril de 2018

Princípio da presunção de inocência e as decisões do STF sobre a condenação em segunda instância - para pensar o caso Lula



     


      Hobbes, o renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel, somente o medo da morte o contém em seus instintos.  O “deus mortal” Estado, seria conduzido por um rei com poderes absolutos, acima da lei.  Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.

     

      Diversamente do ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de tudo!

     

      A história é farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento.  No Brasil tivemos mais de vinte anos de ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado. Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos históricos.  Afinal já tínhamos a Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto, perde de dez (ou mais) a zero.  Hobbes perdeu, mas não morreu. Veremos.

     

      Conforme o CPP no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro. Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).

      

      Ao mudar o entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça do STF.  Ora, então mudou-se a carroça! Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88 (um já citado):

“LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o “LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”



Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O “espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal. Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas as instâncias, a ultima ratio se estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.