sexta-feira, 6 de abril de 2012

Lembranças de um bipolar

Prof. Amilcar Bernardi


Meus amigos de quatorze anos mal pensavam sobre o futuro. Para ser mais específico, pouquíssimo se falava das profissões possíveis para sonhos adolescentes.  Alguém falava em ser médico, outro falava em ser piloto de avião e talvez alguém já influenciado pela família, imaginava-se advogado.  Ficávamos na frente de minha casa, nas noites de verão, falando mil coisas que somadas eram o seguinte: gurias, colégio e gurias.  Época muito boa, de poucas preocupações.
No meu quarto eu era bem diferente. Lembro que eu tinha uma antiga caneta nanquim e queria escrever como os antigos escreviam, com letra enfeitada e em folhas amareladas pelo tempo. Tentei muito ter letra redondinha, fininha com tinta preta.  Também queria uma máquina de escrever que fosse de antiquário. Imaginava uma bem grande, pesada, com teclas bem horizontais, redondas e ruidosas.  Na madrugada eu apagava a luz para ver as estrelas e desejava muito ter um telescópio.  Nem pedi tal instrumento ótico, meus pais não dariam por ser caro e exótico para minha realidade.
Na solidão do meu quarto quando eu imaginava o futuro, não pensava em medicina ou direito. Nem pensava em faculdade.  Eu lia as biografias de escritores, lia livros de poesia e romances. Acreditava que se no século dezenove jovens que liam muito podiam virar escritor muito cedo, porque eu não podia? Se Castro Alves quase nasceu escrevendo, porque eu não podia? Se ele antes de ir para a faculdade já fazia poemas fantásticos, porque comigo não seria igual? 
Seguindo a lógica de que um sujeito jovem no século dezenove podia tornar-se um grande escritor, lendo muito e trabalhando cedo, meu primeiro emprego foi num jornal. Fui um vigia que lia muito no emprego e vivia namorando a redação. Mas não deu certo. Não me tornei um grande escritor.
Quando frequentava o Ensino Médio, apaixonei-me por literatura. Minha mãe deixava comprar muitos livros. Li bastante.  No colégio não me distinguia de ninguém. Era um piá igual a todos. Mas no meu quarto eu já tinha uma máquina de escrever antiga e não tinha telescópio. Porém, já tinha uma letra enfeitada e minha estante já estava repleta de livros de poesias. Nesse período minha gagueira já estava sob controle. Mas continuava tímido. Passava mais tempo apaixonado que namorando. Apaixonava-me pelas gurias mais bonitas, com certeza as que nem me enxergavam!
No Ensino Médio eu me sentia um bipolar, um sujeito com duas personalidades. Para os amigos eu era um cara absolutamente previsível, sem graça até.  Porém, no meu quarto, sozinho, transformava-me! Teclava como louco na máquina antiga, escrevia com a caneta nanquim muitos poemas.  Teve um tempo, eu já estava na Universidade, acometido de extremo delírio, li Rui Barbosa, seus discursos.  Minha bipolaridade fez com que eu nem fosse notado por ninguém, afinal, meu lado escritor só aflorava na solidão do meu quarto.
Hoje, adulto e homem sério, o paradoxo acontece. Estou no meu escritório sozinho. A janela está aberta e vejo as estrelas. A solidão faz-me companhia. Escrevo num moderno computador. Eu ainda não tenho, mas meu filho já tem um telescópio.  Minha estante está repleta de livros.  Já tive na vida minhas Eugênias (Eugênia Câmara foi o grande amor de Castro Alves). Já não sou vigia de um jornal, nem sou médico ou advogado. Porém aquele guri adolescente hoje voltou à vida. Na solidão do meu escritório o piá voltou a sonhar em ser um grande escritor. Um sonho que com certeza me manterá um adolescente de quatorze anos para sempre.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Descrença absoluta

Prof. Amilcar Bernardi


A sociedade está carente de valores. Aqueles valores que agregam, que trazem confiança para as pessoas. Tirar vantagem sempre (que é um valor também) trás desvantagens sempre (perdoem o trocadilho). Quanto maior a vantagem que tenho sobre o outro, maior será a desconfiança que se estabelece. Sujeitos desconfiados são violentadores e violentados, pois foi retirados deles a capacidade de não temer o próximo.

O elogio desenfreado à racionalidade é preocupante. Penso que a confiança é algo irracional. Está mais próxima da fé na bondade do outro do que na capacidade de calcular o mal que o próximo pode nos causar. Penso que a racionalidade faz com que eu desconfie primeiro. Depois, como exceção à regra, eu estendo a mão solicitamente ao outro. A razão pondo o cálculo acima da crença (irrefletida) na bondade alheia, faz com que a confiança seja exceção e não a regra.

A desconfiança (racional, refletida) virou epidemia. O medo de ser lesado e o desejo de lesar esta desestruturando os vínculos sociais. O número de leis cresce enormemente e cada vez são mais duras. Como resultado, passam a ser uma arma nas mãos dos mais “espertos”. Estes “espertos” as usam em favor próprio. Corremos o risco de o emaranhado de leis causarem ainda mais desconfiança nos seus usuários. Os cidadãos temem a lei, pois ela pode voltar-se contra eles mesmos. Porém, ela logo vira poderoso gládio quando os favorecem. Nenhuma lei pode ser justa ou causar harmonia na sociedade, quando os valores estão adoentados. Todo o valor que diminui a qualidade de vida dos cidadãos é doente.

A descrença avança. A razão empobrecida pelo cálculo egoísta/hedonista avança. Quando falo em descrença e falta de fé, não necessariamente refiro-me a apelos religiosos. A falta de fé na capacidade do homem cidadão ser bom, mata a cidadania do homem. Podemos também afirmar o seguinte: a crença na mesquinhez absoluta do homem, causa a descrença absoluta na cidadania.  Aquilo em que acreditamos ou que desacreditamos é que in/viabiliza a coesão social. Vejo que estamos cada vez menos coesos. Não penso que as cidades desaparecerão, que epidemias dizimarão milhões de pessoas. Apenas entendo que os laços que nos manterão nas cidades serão cada vez mais precários e penosos. Pertencer à sociedade será um ônus quase impossível de suportar.

Quando a ausência de fé no outro acontece, as sociedades buscam alternativas para sobreviverem na convivência.  A fé no dinheiro e tudo que ele significa parece ser uma alternativa bem boa. Mas é apenas aparência. Nada pode comprar a confiança. A confiança é um valor não quantificável. Até podemos comprar segurança, mas nunca confiança. Com certeza quanto mais compro segurança, é porque mais desconfiado estou.  Nada pode substituir a confiança no outro baseado nos valores do amor e do respeito. Digo isso porque sei disso. E sei porque sinto isso. Porque é um fato inquestionável. Sinto isso todos os dias; no supermercado, no estacionamento, nas aulas que dou. A confiança que tenho na absoluta maioria dos meus alunos, por exemplo, é em tudo diferente do salário que recebo.

Sei que inúmeras pessoas já atingiram a descrença absoluta, o desvalor absoluto. Porém estas nada mais podem contar para nós. Refiro-me aos suicidas. Eles são um bom exemplo para refletirmos sobre a desilusão absoluta.  Fico também imaginando se a humanidade um dia chegará a esse nível, a descrença absoluta no outro. Aí sim, o mundo acabará e não será por um cataclismo planetário. Será um cataclismo na fé do homem no homem e, portanto, sua morte autoimposta e absurda.




quarta-feira, 14 de março de 2012

O plantador de árvores e o de rosas.

Prof. Amilcar Bernardi 
Podemos imaginar uma pessoa que planta árvores para derrubá-las e vendê-las.  Sua intenção não é diretamente o cuidado com a planta.  Seu objetivo é o crescimento rápido para vender o mais rápido possível. Este plantador de árvores não deseja a árvore e sim a sua venda, a sua eliminação em troca de dinheiro que, por sua vez, comprará mais árvores para mais venda.
Também podemos imaginar uma pessoa que planta flores ornamentais. Alguém que não as venda. Que quer que sejam belas e saudáveis.  Quanto mais investe nelas, mais belas elas ficam. Quanto mais flores crescem, mais flores ele tem. Quando alguém pede alguma rosa, o plantador de rosas olha desconfiado.  Só dará uma rosa ser for por um bom motivo.
O plantador de árvores vive para o futuro. O presente para ele só existe na espera da futura venda. Este plantador não se interessa pelo organismo vivo que está se desenvolvendo, nada quer saber dele além daquilo que pode aumentar a produtividade. Esta pessoa é externa a vida do que planta. A morte (corte) da árvore é mais importante que a vida dela.
O plantador de flores com o perfil aqui apresentado, vive no presente. Quer a vida e a beleza da rosa. Cada dia é um cuidado especial. Não as vai vender. Não interessa o valor da planta no mercado (o mercado é algo exterior a relação dele com as rosas). O que interessa é a beleza das flores. Uma beleza que faz o plantador feliz. Mais feliz quanto mais vivaz for a planta. É provável que a morte de suas rosas o faça sofrer. Talvez até morrer. Podemos dizer que as plantas ornamentais do exemplo, respondem ao seu cuidador. A linguagem delas é a beleza. A pessoa que cuida sente-se recompensado pelo seu trabalho, pela resposta que recebe. Podemos dizer que se “comunicam”. As rosas são o espelho do trabalho do cuidador. Um elogio a elas também elogia por “espelhamento” o plantador.
O plantador de árvores não se espelha na beleza das árvores. Ele sente-se recompensado pelo valor que delas advém e que o capacita a comprar mais coisas. Sequer o dinheiro das vendas pode satisfazer esta pessoa. O que o satisfaz é compra de produtos e o status social que isso dá. Com certeza o plantador de árvores não quer cuidar delas. Se pudesse, teria muitos empregados que isso fariam. Esta pessoa gosta mais do que obtém da plantação do que o prazer de cuidar das árvores. O tempo presente, como já foi dito, quase não existe: ele quer o futuro. O futuro abate das árvores. Ele deseja o extermínio do que cuidou e plantou.
Quando um aluno pergunta o que é mesmo estudar, eu conto essa história.  Digo que estudar é como o cuidador de rosas. Quem estuda vive no presente. Sente e se orgulha do que faz. Quando eu estudo em casa “presentifico” o que foi dado na aula. Trago para o aqui e agora da minha consciência o que estudei na aula.  Quem verdadeiramente entendeu o que é estudar, planta seus estudos para ver quão belo isso é. Não irá vender o que aprendeu e pouco se importa com o que os outros pensam. Cuidar de rosas e estudar é um ato solitário.  Estudar é “hojeficar” o já visto nas aulas. Sempre é assim: eu aprendo agora. Sempre é agora para quem está em aprendizagem. Não há tempo futuro ou tempo passado! Cada segundo que passa é um segundo presente. Eu aprendo a cada segundo. Quando tenho o insight da compreensão do que eu não compreendia, o tempo parou presentificando o tempo psicológico por milésimos de segundos.
Quando eu ouço alguém dizendo que devemos estudar para ter um futuro melhor, lembro-me do plantador de árvores. Eu sinto que quando falamos em verdadeiramente aprender/estudar, falamos de rosas. Rosas que valem por si mesmas. Que são plantadas para o prazer imediato de produzir vida. O prazer de plantar flores, como no exemplo anterior, é imediato, atemporal, sempre presente.
Não podemos estudar profundamente se somos plantadores de árvores, se estudamos para nos descartarmos logo do que produzimos na colheita das avaliações. Não é possível aprender se queremos apenas ganhar algo no futuro no mercado de trabalho. Aprender é para hoje. Sempre é para hoje.


sábado, 3 de março de 2012

Ser ou não ser...

Prof. Amilcar Bernardi

Estava num encontro de professores após uma breve fala com eles. No final, uma colega perguntou-me a queima roupa: Professor, o senhor é filósofo ou somente dá aulas? Fiquei sem resposta imediata. Preferi escrevê-la. Isso porque a pergunta deixou-me perplexo, pois é muito complexa. É maior do que eu posso responder.
A professora partiu do princípio de que sei o que sou, se sou isso ou aquilo. Confesso que estou longe de saber definir-me. Passei a refletir sobre quem somos. A imagem que surgiu em minha mente foi a de um ramalhete de flores coloridas. Não estou querendo ser poético. Eu acho que as pessoas são assim, buquês de flores. Quero dizer que ninguém é isso ou aquilo, somos um conjunto de “issos” e “aquilos”: como é um ramalhete. Se separarmos todas as flores, excluímos a ideia de ramalhete e falamos de cada flor. Então, somos muitas coisas e se separarmos cada uma, morreremos, pois somos conjuntos de coisas e não um somatório apenas de detalhes. Se algo é de nós retirado, perdemos nossa humanidade complexa.
Quando penso o que sou, vejo um conjunto infinito de contextos e relações.  Não posso dizer que sou a flor do centro do ramalhete, ou a mais bonita, ou ainda a que está mais a direita. Sou todas as flores que me fazem. A pergunta da professora sacudiu-me. Quero crer que ela via em mim uma faceta do conjunto de facetas que sou e, ao questionar-me, obrigava-me a escolher alguma flor de mim e afirma-la como sendo o conjunto, o que sou.  Para aclarar mais: caso eu afirmasse que sou filósofo, eu teria escolhido as flores da filosofia, ignorado as demais, e as escolhidas seriam apresentadas como um cartão de identificação. Porém, como posso escolher o que apresentar de mim? Se eu escolhesse, retiraria das demais pessoas a liberdade (e a responsabilidade) de escolherem que flores de mim querem apreciar.
Afinal, sou ou não sou filósofo? Ora, como vou saber? Essa resposta não pertence a mim. Pertence a quem escolhe do meu ramalhete as flores da filosofia. Mesmo que eu tivesse todas as garantias institucionais que sou um filósofo, quem vai confirmar é quem lê o que escrevo, quem ouve minha fala. É a história que decide. Melhor dizendo, são as pessoas que decidem quem eu sou na história. Insisto que se sou ou não filósofo, é uma pergunta cuja resposta não cabe a mim. Não tenho essa responsabilidade, nem tenho o poder de decretar se sou ou não.  No ramalhete que sou tem muitas flores de estudos, outras tantas das escritas que faço. Também têm flores infantis e bobas. Quem pode dizer de uma pessoa que ela é essa flor ou aquela, escolhendo no ramalhete as flores que mais chamou sua atenção? Dá para perceber a responsabilidade disso, escolher o que a pessoa é?
Após estas reflexões, vou deixar a professora que me questionou em dúvida. Na verdade, vou dividir com ela a dúvida que também tenho.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O paradoxo da solidão entre muitos...

 Prof. Amilcar Bernardi


Solitário é alguém que se sente único.  Por isso a solidão. Estando entre muitos e mesmo assim, continua sentindo-se só, precisa então abdicar de ser sujeito único.  Eis o paradoxo: quanto mais sou único, mais estou só.
Quanto mais fixo minha atenção e cuidados em mim, experimento, por consequência, especial solidão. Especial porque esta solidão existe entre muitos outros sujeitos. O usual seria a pessoa estar só quando está sem ninguém! Não seria um “sentir-se” só, mas uma solidão de fato! A solidão a que me refiro é aquela que sentem as pessoas que não reconhecem o espaço público. Entendo como espaço público aquelas situações existenciais e lugares sociais que necessitamos dividir com o outro. Somos solitários quando entendemos que todo o espaço é particular.
O aprofundamento em si mesmo, o egocentrismo, leva o indivíduo entre tantos outros, a ser solitário.  É a eterna crise que os sujeitos sociais se meteram: ser eu absolutamente é excluir o outro (o tu) absolutamente.  Pelo mesmo caminho vai a idéia de liberdade! A liberdade absoluta também é a exclusão da liberdade absoluta do outro! Sediar minha consciência somente em mim é um solipsismo doloroso. Para eu deixar esta solidão, é preciso experienciar a empatia. Projetar minha personalidade para dentro da personalidade do outro para senti-lo, deixa-me menos só, pois ao menos, esta projeção é um reconhecimento de que não sou tão único assim.
Penso que a experiência da solidão nas famílias, nas cidades e nos Shoppings tem relação com isso. Há um esforço enorme do capitalismo contemporâneo para que vivamos em nós mesmos, nos nossos desejos. Acredito que a mensagem seja a seguinte: tu és teu desejo, portanto, quanto mais tu o satisfaças, mais tu serás tu mesmo. Este consumo para que existamos sozinhos, nos deixa - obviamente - só. O mundo passa a ser um meio para mim. Indivíduos passam a serem células indiferentes umas às outras, num tecido social enfermo.
Evidente que esse culto ao indivíduo onívoro de tudo que o cerca, é uma ilusão. Inclusive a solidão é algo artificial. Há séculos sabemos que somos seres sociais.  Que só entre muitos somos humanos.  A solidão absoluta é, portanto, uma impossibilidade absoluta. É o mesmo paradoxo que se apresenta sempre, dito de outra forma.
Seguindo a idéia do parágrafo anterior, insisto que as pessoas para serem gente precisam da onipresença humana. Somos o que somos porque humanizamos tudo e tudo tem que nos humanizar. Então, é o outro e a norma que ele representa (a pessoa é uma norma, pois é uma afirmação de conduta, de desejos e sentimentos que têm que serem respeitados) que nos impele para fora do egocentrismo. Meu visinho é o impedimento da solidão total, do recolhimento em mim mesmo. Os outros humanos impedem minha loucura, meu enclausuramento na egolatria.
Pensei tudo isso porque hoje eu estava num lugar sentado entre outras pessoas. Fixado em mim mesmo, pensava nos meus problemas refletindo com meus botões. Repentinamente fomos todos solicitados a darmo-nos as mãos. Por um segundo hesitei, estava tão dentro de mim que tocar o outro era estranho! Ou melhor, tocar um estranho era sair de mim! A regra do local, que exigia das pessoas obediência aos comandos do palestrante, salvou-me de mim mesmo, pois toquei meu visinho apesar do meu constrangimento. Sorri para ele. Então senti-me mais gente. Percebi que não estou só. Entendi que me ensinaram a ser só. Aprendi que querem que eu seja só. Senti a necessidade de ser um guerreiro em busca do outro.
Ser só é uma mentira. Somos sujeitos sociais. Levamos milhares de anos para aprendermos a importância do outro. Solidão e consumo dão lucros e geram crescimento econômico. Porém, geram guerras, violência e suicídios. Eis outro dilema.
 


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

A escola é um lugar de tensões...

Prof. Amilcar Bernardi

Dias atrás recebi uma mãe aflita.  Queixosa, contava que seu filho de onze anos estava tendo dificuldades de relacionamento, e por consequência, tinha notas baixas também. Alegava que seu filho não tinha amigos na sala de aula. Muitas vezes não era bem recebido nos grupos para fazer trabalhos. Quando o professor intervinha pior ficava, pois a contragosto, os colegas o aceitavam. Essa mãe sofrida descrevia um quadro onde a criança aparecia como uma pessoa que não era entendida pelos demais. Afirmou que o filho era nervoso e que quando era contraditado, não suportava e ficava “emburrado”. Ela deixou transparecer que a escola, no imaginário da mãe, deveria ser um lugar de compreensão e harmonia. A sala de aula não poderia permitir a desigualdade, e que a aprendizagem só é possível num ambiente sem tensões.
Após essa conversa, fiquei refletindo sozinho. Interpretei as queixas da jovem mãe como um equívoco. Ela partia do princípio de que a escola é um lugar sem tensões ou que, pelo menos, a direção e os professores deveriam impedir tensões. Imagino que a moça acreditava que o filho para ser feliz, tinha que ser aceito como ele era e pronto.  Dei-me o direito de ficar “matutando” e concluí que penso totalmente diferente dela.
A escola também é um lugar para tensões. Na verdade não existe um lugar de não tensão. A sala de aula é, em escala menor, a sociedade que a mantém. Então, as tensões do dia a dia dos adultos, refletem-se no das crianças e no dia a dia dos adolescentes.  Não adianta “emburrar-se”. A não aceitação imediata da gente em um grupo faz parte do aprender a ser gente. A necessidade da minha modificação e da modificação do outro para que aceitemo-nos todos, é fato. O professor (ou o juiz na vida adulta) ao provocar forçosamente a aceitação, trás para si o risco de piorar a questão. É a tensão decorrente dos processos que promove crescimento e aprendizagem. A aprendizagem é uma tensão que ao ser solucionada, provoca alívio e também novas tensões.  Se existisse um lugar sem tensões e com aceitações imediatas, este lugar não seria uma escola com certeza. A escola é um lugar de mudanças, mesmo que dolorosas.
Dores na escola? Para o espanto da jovem mãe, eu afirmo que sim. Da mesma maneira que tem a alegria, o choro e o riso. As dores do primeiro amor, as dores do primeiro fracasso, assim como as alegrias do primeiro beijo e da primeira nota boa, acontecem geralmente na escola. E acontecem de maneira democrática. Todos vão passar por muitas emoções na escola... quer queiram, quer não queiram.   O espaço escolar também é o lugar da incompreensão. Afinal, é um lugar de aprendizagem. Aprender a se fazer compreender e a compreender o outro, é a alma da aprendizagem escolar. O colégio é meio para um fim. Não é creche nem um paraíso.  Os professores são um meio para um fim.  Qual a finalidade então? A aprendizagem.  Aprender não é um processo fácil. Também não é em si mesmo doloroso. Creio que é um processo cheio de tensões. Tentar fugir delas faz a aprendizagem ser dolorosa. Fugir trás dor. Enfrentar trás crescimento e fortaleza moral.
A escola é um bom lugar, cheio de emoções, prazeres, dores e in/sucessos diários.  Assim como a vida de um adulto é.  As instituições de ensino não são propagandas enganosas da vida. Ser feliz é superar-se criando forças próprias, é se tornar autônomo. Por isso os alunos estudiosos tendem a serem felizes, porque não fogem. Resta saber o que definimos por felicidade. Eu não sei bem o que ela é, mas tenho certeza que não é a ausência de esforço. Temo que a propaganda enganosa venha das novelas, do Big Brother, dos políticos de vida fácil e da mídia que quer o consumo. A escola, insisto, é um ótimo lugar, um abençoado recanto onde os que vêm querem aprender com seu esforço pessoal e intransferível.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Palavras...


Prof. Amilcar Bernardi


Novamente vem o fim de semana. Ávido vou buscar o jornal e encontro nele a coluna do Bicca Larré. Ele não me conhece, porém sinto-me seu amigo. Gosto do que ele escreve. O assunto do meu amigo hoje é muito importante. Adoro esse tema e já escrevi algumas coisas sobre ele.  Bicca Larré, meu amigo que me desconhece, falou do meu primeiro amor: as palavras.
Não lembro quando senti meu primeiro amor. Talvez lá na educação Infantil, quando eu era criança. Porém, lembro-me das sensações maravilhosas dos meus primeiros escritos. Lembro também que fui apresentado às letras poéticas através de um bloquinho da minha mãe, a Maria.  Era um bloquinho pequeno, cor de vinho ou marrom (da capa mal me lembro).  Minha mãe tinha nele alguns poemas copiados, outros que ela mesma fez quando era adolescente. Eu achei o máximo! Minha mãe escrevia coisas bonitas! Embaixo dos poemas que ela havia feito, havia as iniciais secretas dos seus amores de guria. Eram enigmas para mim. Quem seriam eles? A letra era muito bonita, trabalhada.
Lembro que queria escrever como ela e ter amores secretos também, amores que deixariam iniciais enigmáticas embaixo de cada poema meu.  Como contou meu amigo Bicca Larré na sua crônica de hoje, tornei-me como ele um garimpeiro a buscar palavras bonitas e sonoras. Por isso, creio que meu primeiro amor foram as palavras, depois as gurias. Eu aprendi logo que todos um dia vão se apaixonar, alguns vão casar e serem felizes. Porém, poeta serão poucos, bem poucos. Amar é destino de todos. Escrever não. É escolha, é trabalho e amor ao belo.  Escrever é garimpar palavras e encontrar filões de ouros verbais. Um poeta, um escritor é um ourives de palavras, delas saem joias preciosas.
Então, meu primeiro amor foram as palavras, graças à minha mãe. Com certeza meu último amor será o mesmo, pois sou fiel.  Nunca consegui trair as palavras amando outra coisa. Nunca consegui pintar, tocar instrumentos musicais, cantar ou outra coisa qualquer.  Escrever me seduz de tal forma que nada mais posso fazer. A magia do caderninho materno de poemas copiados e inventados fez de mim para sempre um garimpeiro/ourives de palavras.
Meu primeiro e meu último amor será o mesmo. Sou um homem fiel e constante. Sou um homem previsível. Casei com as palavras ainda criança e este amor será eterno enquanto minha vida durar. Espero um dia estar num caderninho de poemas nas mãos de alguma mãe delicada, para que outro casamento com as palavras possa ocorrer.