quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

O nada saber nada quer nem nada pergunta



O homem se caracteriza pelo existir consciente. Sendo corpo e mente, existir significa permanecer internamente e se projetar no ambiente externo. Nossa pele é mera membrana. Ela nos dá a ilusão de limitar o dentro e o fora de nossa consciência.  Tendemos naturalmente a sair do interior: é inevitável. Uma das maneiras conscientes de se pôr para fora do corpo, é formular perguntas. Toda pergunta leva o Eu para passear fora do corpo.

A qualidade do perguntar (de pôr-se para fora) é diretamente proporcional a história vivencial do sujeito que formula questões. O que vivemos orienta o que queremos saber a mais. O que já sei determina a amplitude do perguntar. Portanto, o que sabemos de antemão permite e (também) limita “o querer saber mais”. Todo o perguntar tem uma pré-condição e uma pré-direção, ou seja, uma orientação condicionada pela vivência do sujeito que propõe perguntas.

O nada saber nada quer nem nada pergunta.

Dependendo das vivências que temos, o perguntar tende ao infinito (em quantidade e qualidade). Em tese, quanto mais eu sei, mais posso perguntar e entender a resposta. O inverso é verdadeiro. Meus estudos (meus interesses e valores) se orientam na área das ciências humanas. Então, pouco sei sobre física quântica. Por consequência, pergunto quase nada sobre ela. E quando pergunto, um tanto das respostas não entendo.

Nossa vida intelectual (interna), quanto mais se amplia, mais busca seus alimentos no exterior.

Pode haver anomalias nesse processo de sair de si para buscar o externo. Isso acontece quando o perguntar busca somente respostas que ratifiquem nosso pré-conhecimento. Há a tentativa de perpetuá-lo, ignorando o que pode contradizê-lo. Nesse caso, saímos de nós na esperança de voltarmos iguais.

Nossos pré-conhecimentos alojam juízos. Estes são valorizados a ponto de orientar “o querer saber mais”. Corremos o risco de ficarmos submissos às informações já tidas como certas e inquestionáveis. Tanto o cientista quanto a pessoa comum, estão sujeitas a este hipertrofismo dos pré-conhecimentos valorizados.

Podemos avaliar nosso interior na tentativa de conhece-lo melhor. Talvez até prepara-lo para sua próxima investida mais livre no mundo exterior. Para isso, é imperioso ao nosso Eu perguntar pelas perguntas, pelas suas pré-orientações.

O perguntar interno (autoquestionamento) é interessante. Algumas dicas de reflexões possíveis:

Por que pergunto o que pergunto?
         Por que quero inspecionar isso e não aquilo?
         Perguntar o que pergunto me traz coisas novas?
                                                                                                           
Questionar a direção das nossas perguntas nos leva ao pré-saber que as determina. O processo tem duas mãos: o que sei determina a pergunta, a pergunta indica o que sei. Sou tanto mais livre para aprender, quanto mais tenho consciência do que internamente me prende.

As perguntas que acrescentam e as que nos contradizem, são as melhores sempre.

Num drástico resumo: as pessoas devem saber pelo menos um pouco para perguntarem bastante. Perguntando bastante saberão muito. Sabendo muito, perguntarão mais...

 O que difere o homem filosófico do homem do senso comum? Sua capacidade de perguntar sobre suas perguntas ampliando a consciência.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

As dificuldades sobre o socialismo – John Stuart Mill (1806 – 1873)




Pretendo fazer uma resenha crítica da parte intitulada As dificuldades do socialismo, da obra Capítulos sobre o socialismo, de autoria do John Stuart Mill. Como metodologia, vou atentar primeiro para os fatos negativos em relação ao socialismo/comunismo. Logo após, apresentarei os contrapontos. Tentarei dispor as posições de Mill de forma a equilibra-las neste texto, como numa balança: desfavoráveis de um lado, favoráveis de outro. Tendo o mesmo “peso”, se anulam. A balança imaginária ficará equilibrada. Farei observações na tentativa de ampliar a compreensão, sem interferir no equilíbrio proposto.

John Stuart Mill viveu num tempo de agitação de ideias em relação a economia e ao “tamanho” do Estado. Podemos compreendê-lo como um liberal, favorável a uma economia de mercado. Entretanto, percebia a situação desfavorável em que viviam os trabalhadores. Compreendeu que havia um problema na distribuição do capital. No capitalismo, a distribuição das suas benesses não ocorria de uma forma justa. Mas não aceitava as ideias revolucionários dos comunistas, pois o perigo da violência e do caos superava as expectativas de sucesso a curto prazo. Desejava uma economia socializada e solidária a ser construída com o passar do tempo sem a necessidade da eliminação do mercado.



Primeiro prato da balança.

Seja socialismo ou comunismo, há uma dificuldade importante: sua implantação. Esta dificuldade está vinculada ao costume das pessoas em relação a propriedade. Ninguém quererá facilmente, deixar o que é seu em nome de uma ideia, de uma proposta que ainda não existe de fato, que sequer foi testada. Portanto, tanto pior será a reação quanto mais rápida for a implantação. O pior cenário é a implantação por uma revolução.  Uma revolução levará a utilização da violência. Passar da propriedade privada dos meios de produção à propriedade coletiva, pode ser algo traumático. Segundo John Stuart Mill: “A primeira (forma de socialismo a ser implantada lentamente) tem também a vantagem de poder ser implantada progressivamente e demonstrar as suas habilidades mediante experimentação. Pode ser experimentada inicialmente numa população selecionada e estendida a outras na medida em que o permitam sua educação e sua cultura. (...) (01)

Não menos importante, é a dificuldade em encontrar, num ambiente comunista ou socialista, indivíduos dispostos a gerir os negócios. Afinal, o dirigente assumiria enorme responsabilidade, entretanto, teria uma remuneração por seus esforços muito similar ou igual aos demais trabalhadores. A moralidade atual, embasada na competição e no mérito, impede que os mais qualificados se apresentem como voluntários para a gerência das associações coletivas. A gratificação de ganho maior para maior responsabilidade, produtividade ou qualificação está ausente no socialismo. Os interesses pessoais não estariam contemplados e, portanto, não haveria motivação suficiente para maior empenho individual. A educação familiar, escolar ou social (capitalistas) não são favoráveis ao desenvolvimento de valores altruístas.

Mesmo que alguém se proponha a gerenciar a produção num espaço socialista, seria bastante difícil tomar as decisões. Estas ocorreriam de forma lenta e sofrível. O poder desta pessoa estaria limitado à votação da decisão por uma assembleia de pessoas de poderes iguais. Buscar o consenso entre pessoas em pé de igualdade, é muito difícil. Requer tempo, paciência e experiência. Afirma Mill: “(...). Evidentemente, sua autoridade seria resultado de eleição pela comunidade, pela qual sua função pode a qualquer momento ser retirada deles; o que tornaria necessária para eles, mesmo que não determinado pela constituição da comunidade, a obtenção de consenso geral dessa comunidade antes de proceder a qualquer alteração do modo estabelecido de conduzir o empreendimento. A dificuldade de persuadir um corpo numeroso a mudar o modo costumeiro de trabalhar, mudança que frequentemente perturba bastante, e o fato de o risco ser muito mais claro em suas mentes do que as vantagens, ensejariam uma grande tendência a manter as coisas como sempre foram. ” (02). São tantas as dificuldades que seria muito mais vantajoso ao trabalhador, rejeitar as posições de comando. As administrações privadas têm, nesse sentido, muito mais facilidades e vantagens sobre as administrações coletivas.


O fato de cada trabalhar ganhar o mesmo ou ter contraprestação similar aos demais, não é algo justo e causará bastante desconforto. Pessoas mais fortes receberão o mesmo quinhão que os mais fracos (que produziram menos). O mesmo acontecerá com o profissional mais qualificado e o menos qualificado. A igualdade não é menos complexa. Numa comunidade, exigir trabalhos iguais para trabalhadores desiguais é problema sério. Segundo o autor: (...) Mas, além disso, ainda é um padrão muito imperfeito de justiça exigir a mesma quantidade de trabalho de todos. As pessoas têm capacidades desiguais para o trabalho, tanto mentais como físicos, e o que pode ser tarefa leve para um é uma carga insuportável para o outro. (...) (03). Sabendo desta dificuldade, os egoístas e preguiçosos, tenderão a tirar proveito disso; trabalhando menos que os outros na esperança de sua retribuição ser igual.

Fica evidente que, para uma convivência saudável na coletividade, é exigido alto grau de consciência da importância dos valores morais que permitam o agir em prol do grupo. A educação assume, portanto, um papel de relevância nesse sentido. O problema está na questão de como serão ensinados os filhos, pois é uma questão muito valorizada pelos pais. Caso alguns destes não desejem o tipo de educação oferecido pela comunidade, não terão outra escolha. Não é fácil aceitar a maioria quando somos discordantes dela. O problema da liberdade individual não fica resolvido. Nas palavras de Mill: “Está aqui uma das mais frutíferas causas de discórdia em qualquer associação. Todos que tivessem opinião ou preferência formada com relação à educação que desejariam para seus próprios filhos, teriam de se valer de sua chance de obtê-la com base na influência que pudessem exercer sobre a decisão conjunta da comunidade” (4). Usar de influência nada mais é que uma corrupção do ideal socialista. Seria uma forma de prevalecer o interesse privado sobre o coletivo, além de corromper a autoridade encarregada.

A preocupação em agir de acordo com os interesses coletivos, não é algo que possa ser aceito facilmente. Ora, a liberdade privada e os interesses familiares são invadidos pelos interesses da coletividade. Não será possível mais agir como indivíduo. As ações pessoais serão limitadas pelas ações permitidas pela maioria. A renúncia pessoal em nome do social é um problema enorme, um empecilho que não pode ser menosprezado. É o predomínio da autoridade pública em detrimento da consciência individual. Literalmente, o autor afirma: (...). Em todas as sociedades, o constrangimento da individualidade pela maioria já é um mal grande e crescente; ele seria ainda maior sob o comunismo, a menos que ofereça aos indivíduos o poder de estabelecer limites a ele pela opção de pertencer a uma comunidade de pessoas com mentalidade semelhante à sua. ” (05)


Até este momento, mostramos apenas o prato da balança em relação ao aspecto negativo do socialismo ou do comunismo; apontados pelo filósofo Mill. Agora, vamos trabalhar o outro prato da balança. Acrescentando os aspectos positivos, pretendemos igualar os “pesos” de ambos os lados, equilibrando a balança. Continuaremos utilizando, por óbvio, o mesmo autor na mesma obra.

Segundo prato da balança


Mill afirma que a implantação abrupta do comunismo acarretará o fracasso da tentativa. Entretanto, será possível tal implantação se ela fosse cautelosa. No socialismo, através de experiências sucessivas em pequenas escalas, a população perceberá a viabilidade e as vantagens de tal sistema. Também, os gestores das associações e cooperativas, com seus erros e acertos, aprenderão a melhor forma de trazer à realidade as ideias socialistas. Portanto, é inegável que a implantação do modelo socialista é viável e vantajosa, mas não pode se realizar rapidamente sob pena de haver caos e derramamento de sangue. A progressiva democratização da gestão dos meios de produção, irá desenvolver a consciência dos trabalhadores. O desenvolvimento de uma consciência social, de uma visão coletiva, é fundamental, e isso não acontece de forma rápida. É preciso boa caminhada para aprender a viver a liberdade socialista, principalmente para pessoas acostumadas à sujeição oriunda da competição capitalista.

No ambiente atual da competição e dos ganhos individuais, o trabalhador só se esforça e se qualifica na medida e proporção das vantagens pessoais que percebe. A esperança de mais ganhos e ascensão profissional é impulso muito forte para a produção crescente deste trabalhador. Mas, há outros valores possíveis, como a honra ou a percepção que o trabalho de cada um é bom para a comunidade, que os frutos do trabalho são para si, mas também para os demais. Tais valores, são em muito superiores aos interesses egoístas. Há motivos eticamente superiores ao ganho individual. A educação habitual não enfoca os valores mais elevados. Uma mudança educacional é muito importante. É imperioso dar mais importância aos interesses coletivos, ao que é bom para a comunidade. Aos poucos, lentamente, é possível ensinar que o trabalho coletivo é muito mais importante e produtivo que o trabalho somente para crescimento individual. Quando trabalhamos para a melhoria das condições de todos, e inclusive para nós próprios, o impulso pessoal será muito mais efetivo. Fica claro que, assim motivado, o trabalhador assumirá qualquer das funções nas cooperativas, até as de gerência. E isso por motivos mais nobres que os ganhos pessoais. Nessas cooperativas, os proletários têm voz e se submetem, por consequência, às suas próprias determinações (a hierarquia é abrandada). O ambiente é democrático e produtivo. De certa forma, todos comandam e são comandados.

A democracia na gerência das cooperativas e associações, tem seu preço. As decisões precisam ser deliberadas e votadas, o que as torna mais complexas. Mas, não necessariamente a complexidade é ruim. Percebamos que numa cooperativa socialista, todos os membros estão motivados por uma moral coletiva, e todos entendem do trabalho. Portanto, colocarão na gerência o melhor deles. Seus votos serão de qualidade nas decisões, pois todos são especialistas no assunto, e têm a convicção que são bem gerenciados, afinal, estes especialistas escolheram a sua gerência. Diz Mill: “Contra isso (a dificuldade das votações), deve se colocar que a escolha feita por pessoas que têm interesse direto no sucesso do empreendimento, conhecimento prático e oportunidade de julgamento pode-se supor que em média resulte em gerentes mais capazes do que os azares do nascimento que hoje determinam quem será o proprietário do capital” (...) (06). Outro fator para querer ser gestor, será o desprazer de não sê-lo e ser comandado por alguém menos preparado. E mais: “mas, em compensação, deve-se afirmar que sob o comunismo o sentimento geral da comunidade, composta de companheiros sob cujos olhos cada pessoa trabalha, seria certamente favorável ao trabalho bom e duro, e desfavorável à preguiça, ao descaso e ao desperdício” (07) Esse espaço cooperativo levará às pessoas a encontrarem a liberdade e a independência, isso de forma responsável em relação aos companheiros; sem violência ou coação. Isto é o mais perto que podemos chegar de uma justiça social.

Pessoas diferentes recebendo igual contraprestação à sua dedicação. Pessoas fracas sendo exigidas como se fossem fortes. Essas questões dadas ao bom gestor, são logo equacionadas. Caso mantenhamos nossa atual mentalidade, ou seja, sermos propensos a trabalharmos somente em proveito próprio, o ideal de uma justiça distributiva na cooperativa socialista, é inviável. Mas, nas palavras de Mill: “Estes inconvenientes pouco seriam sentidos, pelo menos durante algum tempo, em comunidades compostas de pessoas escolhidas, sinceramente desejosas do sucesso da empresa; mas planos para a regeneração da sociedade têm de considerar os seres humanos médios, e não apenas aqueles, mas o grande resíduo das pessoas muito abaixo da média em virtudes pessoais e sociais”. (08) A medida que os trabalhadores forem exercitando um alto padrão ético e intelectual, possíveis injustiças serão minimizadas. O fato de não existir uma justiça cem por cento eficaz, não inviabiliza a visão socialista. Também importa salientar, que a todos pertencem os meios de produção e a divisão do trabalho. Que o produto deste trabalho, será um ato público conforme regras anteriormente estabelecidas (e aceitas) pela comunidade. Algum desequilíbrio será resolvido ou mantido pela própria comunidade.

Mill salienta, sempre que possível, a importância da experiência de uma ética social, ou seja, dos valores sociais. A educação é um dos principais instrumentos. Mas, quem decide quais valores a serem ensinados? E os discordantes? Uma dica já foi dada no parágrafo anterior. As regras são discutias e previamente elencadas. Cada pessoa falará livremente de suas discordâncias. Portanto, cidadãos iguais discorreriam sobre seus ideais. Mesmo sendo impossível a unanimidade, o consenso (mesmo não absoluto) traria a concórdia e aceitação crítica. O diálogo livre entre iguais, convence da importância de um acordo a ser seguido. Em uma comunidade bem constituída, todos são ganhadores com o sucesso das outras pessoas; o mesmo vale para a discussão sobre a educação.

A prevalência do social sobre o individual, de fato, interfere nas vidas privadas. Então é possível dizer que o espaço individual se dissolve no coletivo? Evidentemente que não. Mill é um filósofo muito preocupado com a liberdade. A consciência individual aparece e brilha nas discussões sobre o espaço público e no espaço público. O sujeito crítico, livre, num ambiente de iguais, portanto, democrático, expõe sua visão particular e a submete às demais visões. Cada indivíduo não se deixa invadir, mas se convence do que é melhor para todos. Aceita livremente o que foi decidido, pois sabe que ninguém tem má fé e todos querem o bem da comunidade. Mill reconhece que, no socialismo ou no comunismo, não há uma concórdia celestial e plena. A realidade é sempre perturbada, pois as individualidades não se perdem. Evidentemente que estas discórdias não são as mesmas das sociedades capitalistas. Elas continuam a existir; mesmo que sejam em função da reputação, reconhecimento ou poder pessoal. Nunca deixaremos de ser humanos e, por consequência, sujeitos conflitantes. É saudável que haja posições conflitantes, pois, o conflito é da natureza da democracia, mas principalmente, da natureza humana. As pessoas nunca deixarão de pensarem por elas mesmas.



01) Capítulos sobre o socialismo. John Stuart Mill. 1ª edição, São Paulo, Editora Fundação  Abramo. 2001. Página 91
02) Idem. Página 96.
03) Idem. Página 100
04) Idem. Página 102
05) Idem. Página 103.
06) Idem. Página 96
07) Idem. Página 98.
08) Idem. Página 101

sábado, 27 de janeiro de 2018

Funk: o fetichismo incentivado




         "Certo grau de fetichismo, portanto, está habitualmente presente no amor normal, especialmente naqueles seus estágios em que o objetivo sexual normal parece inatingível ou sua consumação é impedida". Freud - Três ensaios sobre a teoria da sexualidade.
    
    
    
    
    
 Podemos dizer que o fetiche é algo que é colocado no lugar do objeto “natural” de desejo sexual. Algo, uma parcela do que vê, faz com que a pessoa se sinta excitada. Pode ser um objeto, como um sapato feminino de saltos altos, ou pode ser parte do corpo de uma pessoa (o tórax malhado, por exemplo). Depreende-se que todos nós somos um tanto fetichistas. Ninguém escolhe seu fetiche, pois sua origem é inconsciente. Sem problemas!
    

    
  O fetiche não é nem bom nem mau. Só será um mau quando causar infelicidade, dor psíquica ou sofrimento. Fora disso, apenas podemos dizer que é um fato da sexualidade humana, portanto, algo amoral (atentem para o “a” antes da “moral”. Não é um “i”.)
    
      Mas, passa a ter um componente preocupante quando um fetiche é conscientemente incentivado. Quando as mídias intencionalmente treinam o olhar e o desejo para fragmentar a pessoa. Uma mulher (ou homem) é sensual no seu contexto. O olho, o braço, a perna, a cintura, tomados por si só, nada significam. A sensualidade não está aqui ou ali. Está no conjunto. O homem ou a mulher, são sensuais no seu todo corporal.
    
      Quando as músicas e as coreografias ensaiadas, notadamente no funk, celebram e focalizam a bunda feminina, têm a intenção de criar um fetiche.
     
Olha a explosão
Quando ela bate com a bunda no chão
Quando ela mexe com a bunda no chão
Quando ela joga com a bunda no chão
Quando ela sarra e o bumbum no chão chão
                    (Olha a explosão – Mc Kevinho)

        Fico impressionado com as celeumas artificiais incentivadas.  Percebo isso quando é dito que a artista tal é corajosa porque mostra a bunda com celulite, e isso repercute! Mesmo sem ter relevância alguma.  Pior fica quando alguém defende que a mulher tem o direito de mostrar o que quiser e, na sequência, defende o empoderamento feminino ao mostrar a bunda. A defesa do direito de “mostrar o quiser” e da tese do “empoderamento”, só se torna visível (relevante) quando a bunda é focada. As bundas portam uma mulher!
    
      Então as clínicas vendem tratamentos para as bundas (não para as mulheres). As músicas se submetem a terem letras que valorizem o culto às bundas. As cantoras passam a terem bundas magníficas. Bundas vendem bem. E como tudo que vende, o mercado tende a empurrar o consumo, manter o desejo, estimular a procura. Se a bunda tiver uma boa voz e talento, melhor, mas não necessariamente.
    
    
      A questão não é a bunda em especial, mas o fetiche que é imposto. A questão não é a mulher de nádegas lindas. Não! A questão é a intenção de fixar a sexualidade num ponto do corpo feminino. O problema é sobrepor a parte ao todo. Quero dizer, a sensualidade está no conjunto da mulher! Ela toda é sensual, não pode ser fragmentada. Impor, vender e comprar um fetiche conscientemente, merece ser questionado.
    
      Para que não aja dúvidas quanto a intenção de ensinar o fetiche bunda, as letras medíocres das músicas indicam para onde deve o olhar se fixar. As letras dizem o que (no corpo) valorar sexualmente. O olhar tem que ser direcionado. Sem esquecer as expressões faciais do cantor. Geralmente, expressam direção, fixação e desejo sexual (nunca amoroso). As bailarinas e as cantoras movimentam seus quadris, sempre num sentido vertical (sobe e desce) rítmico, oscilante. Sempre mais do mesmo.
    
      E quando os (as) compradores (as) de glúteos (os consumidores de músicas e de fetiches impostos) se cansam, vem algo novo, sempre mais provocativo. Vale tudo para manter a fixação.
    
      As gravadoras e as indústrias de cervejas, agradecem.
    
    
    
    


terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Escola, informação e ensinar política.


As informações estão nos ares cibernéticos e midiáticos.  Na ponta dos dedos ao teclar, e na retina ao ver e ler o mundo, está tudo o que a humanidade pode informar. Está ao alcance dos sentidos e quase de graça.  Dá uma enorme vontade de dizer que só não aprende quem não quer. 

Os alunos são surfistas nas águas das informações. Pegam suas pranchas “internéticas” e surfam nas melhores ondas, é claro. Escolhem aquelas que darão mais emoções. Vão até aquelas que os estimulem a mais surfar. Ondas chatas, pequenas, previsíveis e ritmadas não são as preferidas. Não importa a qualidade do conteúdo, mas a força da onda!



A escola é ritmada. Vai das ondas pequenas às maiores. Dá para surfar nas ondas escolares, mas a adrenalina é geralmente pouca. O ambiente é controlado e quer ser eficiente. A escola é segura e previsível. No início da vida, nós mamíferos, somos dependentes da segurança da mãe por muito tempo para aprendermos a crescer. Hoje, mesmo os alunos sendo modernos e tecnologizados, aprender a crescer ainda tem de ser num ambiente seguro (a escola).


Sabemos que ensinar não pode ser apenas entrar em contato com as ondas de informações. Isso porque, como já foi dito, elas estão em todos os lugares soltas, jogadas, sem nexo; um perigo! O que se exige é que as instituições escolares ensinem aos jovens a serem críticos, estudiosos, que tenham sociabilidade, que aceitem as diferenças, que sejam pessoas que saibam dialogar, que saibam posicionarem-se, que sejam polidos e que sejam bons cidadãos. 

Por isso, as escolas estão sendo chamadas a ensinar os jovens a serem políticos, e não surfadores de informações midiáticas. Claro que me refiro ao termo política da Grécia clássica, ou seja, a arte de encontrar o bem nos procedimentos relativos a cidade. Para isso, os sofistas ensinavam a retórica (argumentar bem) e os filósofos falavam da ética (vida justa entre muitos).  Segundo os clássicos, ser um sujeito político é saber viver bem na cidade, é aceitar os limites da lei e da ordem estabelecida pela maioria. Para que seja possível encontrar um sentido para o jovem crescer em sociedade, num oceano caótico de informações a ele disponível, é necessário que os educadores incentivem reflexões políticas, éticas. Afinal, as informações estando liberadas em grande quantidade, tornou-se de suma importância saber o que fazer com elas para o bem de todos. 

Caso minhas reflexões sejam verdadeiras, é preciso que todos percebam isso claramente, sem hipocrisias. Digamos aos educadores: ensinem mais a discernir o bem coletivo e menos os conteúdos desconectados da vida em sociedade.


Então, assumamos os riscos disso e pronto. O que não pode acontecer é pedir cada vez mais que os professores deem informações aos alunos (competir com a internet?). Nem é possível acrescentar mais responsabilidades às instituições escolares já assoberbadas. A sociedade não pode pedir o que desvirtua a principal finalidade das escolas, que é aprendizagem de uma vida ética através dos conhecimentos acumulados. 


Surfar pelas informações está cada vez mais fácil. Mas, ser ético e viver de uma maneira politicamente saudável, está cada vez mais complicado.


sábado, 20 de janeiro de 2018

Eu fiz minha escolha pelo estudo.















Quando eu entrei no curso de Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria, meu tio professor, disse-me: Filosofia? Acreditas que estás na Europa? Com isso, ele quis que eu compreendesse que cursos superiores são feitos para ganhar dinheiro. Por consequência, cursos não rentáveis devem ser evitados. Essa lógica monetarista é nefasta.

Se uma nação capitalista não oferecesse todos cursos superiores que não dão dinheiro, seria o fim dessa nação.  Cada um dos leitores pode imaginar vários cursos superiores que não são bem remunerados, e os excluam das academias. Com certeza seria um caos. Mas quem se importaria?

Por outro lado, se a questão é a remuneração, nem sempre estudar formalmente é um bom negócio. Muitos aprendem profissões de seus pais. Depois abrem um negócio e “enricam”. Há inúmeros outros que com inteligência, inventam algo e pronto, enriquecem. Outros tantos, ficam famosos e ricos por mil outras formas. Para estes, ter estudado seria um mau negócio.

As nações que se regem pelo capitalismo, têm esse fetiche. Só entendem as atividades humanas que podem produzir o lucro. Portanto, todas as atividades são apenas um meio para um fim: o dinheiro. A loucura é tanta que para os que já nascem ricos, estudar é um problema. Afinal, eles já têm a finalidade do estudo, que é o dinheiro. Então, estudar para quê?

Lembrei-me que os animais são criaturas satisfeitas. Isso porque nascem tendo o que precisam. Não estudam. No máximo aprendem a caçar brincando com os animais mais velhos. Precisam de pouco. Precisam do que seus corpos necessitam e que sintam prazer sensorial (não possuem o prazer estético). Satisfeitos seus corpos, brincam, acasalam e dormem. Isso é assim porque eles não têm alma. Ao menos alma humana.

O problema está para os humanos, quando eles agem como se não tivessem alma. Como se tivessem apenas corpos animais. Então, sendo só corpos, fazem somente o que seus corpos pedem. Ou seja, só o que dá prazer. Dinheiro dá prazer, logo, corpos se viciam em dinheiro. Sem dinheiro, os corpos teriam que caçar seus prazeres. Iria ser bem sinistra esta situação!

Mas, felizmente, não somos apenas corpos. Temos consciência. Alguns (como eu) chamam de alma. A educação não é pensada para prazeres corporais. Ela é pensada para o prazer das consciências. Estas, quanto mais estudam, mais conscientes são. Criam mais vida estudando outras vidas conscientes. Nossas almas se alimentam de outras almas ao estuda-las e compreendê-las. Nossos corpos superdesenvolvidos não podem fazer isso.

A educação é espiritual. Ela trata exatamente daquilo que nos difere dos animais: nossa consciência. Qualificar nossas consciências é tarefa que toda a humanidade deveria se preocupar. Nem é tão caro assim. Mas, as nações capitalistas são fetichistas. As atividades que fazemos são meios para um fim, lembram? O dinheiro. Qualificar nossas almas não dá dinheiro. Portanto, por que qualificá-las, perguntará o capitalista. Qualificar os corpos e seus desejos é muito mais lucrativo. Mais corpos desejantes, menos almas educadas! Eis a ciência do lucro!

Por isso vivemos numa espécie de zoológico humano. Para cada prazer caro jogado nas nossas jaulas existenciais, mais pulamos felizes.


Até hoje estudo Filosofia. Não moro na Europa, nem estudo para ganhar dinheiro. Estudo porque tenho alma e a qualifico sempre que posso. Ganho pouco e pouco dou lucro para minha nação capitalista. Mas sou feliz porque faço parte de um exército de pessoas pouco remuneradas, mas que estudam para melhorar o mundo. Mesmo que melhorar o mundo não dê lucro. Mesmo que destruí-lo seja lucrativo.  Eu fiz minha escolha pelo estudo, pela educação. E tu?

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Elementos de Kant



Kant no final do século XVIII, opôs-se a moral do coração de Rousseau. Kant afirma o papel da razão na ética.  Diz que por natureza somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos e ávidos de prazeres que nunca nos saciam. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.  O dever kantiano é uma imposição da razão prática. A razão prática não contempla uma causalidade externa necessária – como as leis da física -, mas cria sua apropria realidade, na qual se exerce. Trabalha com o reino humano da práxis, no qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade.
Podemos perguntar: se somos racionais e livres, por que os valores morais não são espontâneos em nós, mas precisam assumir a forma de dever?
Responde Kant: porque não somos seres morais apenas. Também somos seres naturais, submetidos à causalidade necessária da natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites e impulsos. A natureza nos impele a agir por interesse. Esta é a forma natural do egoísmo. A razão prática deverá dobrar nossa parte natural. Ela nos obrigará a passar das motivações do interesse ao dever.
Para Kant a natureza a ser conhecia tem, digamos didaticamente, duas características: existe e possui organização própria e pode ser “organizada” por quem a conhece.  A segunda característica diz respeito a nós, que a conhecemos. Nós só podemos conhecer a natureza através de uma janela. Essa janela tem como “altura” o espaço, como “largura” o tempo. Claro, os termos altura e largura, inventei para dar uma noção mais clara do que Kant disse.
Vamos tornar mais complexo isso? Podemos chamar a janela de “a priori” (pois molda a matéria que vamos perceber). A natureza, que vemos através da janela, podemos chamá-la de a posteriori.  O conhecimento a priori não depende da observação (existe antes dela), é uma atividade que acontece antes da observação e de forma espontânea. Essa atividade dá forma a experiência. O conhecimento deve ser independente da experiência, pois foi “peneirado pela reflexão”.
Ex.: A pedra cai de fato (experiência). A capacidade que eu tenho de entender isso e que, portanto, torna esse fato uma lei universal é a priori.

Genericamente:
A priori: diz-se de conhecimento que é condição de possibilidade de experiência, e que independe dela quanto à sua própria origem.
A posteriori: diz-se de conhecimento, afirmação, verdade, etc., provenientes da experiência, ou que dela dependem.

Kant afirma que não podemos conhecer o que não passa pelo conhecimento sensível. Ou seja, podemos conhecer o que podemos ver pela janela que é a priori (lembra?).  Sobre o que não é visto através dessa janela nada é possível dizer. Isso complica a afirmação que Deus existe. Kant não era ateu, apenas estava consciente dessa dificuldade.  Sem poder provar a existência de Deus, elaborou uma moral alicerçada na autonomia da razão humana.  Ou seja, a moral deve ser elaborada pela razão humana.
Ora, se a razão é um atributo a priori (inerente ao ser humano), então uma moral nela fundada seria universal. Essa autonomia é "a saída do homem de sua menoridade". Como somos por natureza, segundo o autor em estudo, egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos, precisamos do dever para nos tornarmos seres morais. Assim a razão prática faz a si mesma aquilo que ela própria criou: o dever. Esse dever não é uma imposição externa, é a expressão da lei moral em nós. Por isso somos autônomos, porque é a razão que nos impõe, mas a razão é algo intrinsecamente humano. Nunca poderá ser uma imposição externa.
Para tornarmos essa questão mais didática, vamos ao seguinte exemplo. Todos nós mentimos algumas vezes. Pequenas mentiras (ou não). Dificilmente conseguiríamos nos mantermos cem por cento livres de alguma inverdade. Mas, caso fôssemos convocados a ensinar a turma da quarta série a mentir, não conseguiríamos. Aquelas carinhas atentas nos fariam tremer. Algo nos impediria. Pelo menos em nossa alma ficaria muito claro que estaríamos fazendo algo errado ao ensina-las a mentir. Kant chamaria de um senso moral. Esse senso moral, que para vence-lo precisamos fazer algum esforço, é denominado de imperativo categórico. Esse termo foi criado por Kant em 1785. Para entendermos melhor o que quer dizer imperativo, podemos aproxima-lo – arriscando deturpa-lo - da idéia de Mandamento (no sentido dado na Bíblia).
Esse imperativo é assim chamado por que é incondicional, existe e pronto, esta lá a comandar. Esse imperativo é incondicional e absoluto.  Essa lei ocorre antes que a experiência tome dela consciência, portanto, ela é a priori. Mesmo que cumprir essa lei traga para mim desvantagens, sei que devo cumpri-la. Sei que devo cumpri-la mesmo quando não a cumpro. Não devemos fazer o bem pensando em algum retorno para nós mesmos. A ação será moral se agirmos somente em nome do imperativo.  Agimos por causa da lei moral. O prazer pode até acompanhar o ato moral, mas nunca o motivo desse ato. A boa vontade é a manifestação da razão, por isso seguimos o dever pelo dever mesmo.
É importante entendermos esse imperativo categórico. Como Deus está fora da “janela” do entendimento, devemos nos guiar na boa ação, ou seja, no imperativo incondicional. Ë a própria razão que as dita.

Imperativo categórico: Age de tal forma que o princípio moral (máxima) de tua ação possa tornar-se uma lei universal.

É possível dizer que Kant divide a ética possui duas partes. A parte a priori: esta é não empírica, ou seja, é  pura. Também afirma a existência da parte empírica, ou seja, o que baseia-se nos preceitos ensejados pela experiência. Esta última parte seria a aplicação correta dos princípios a priori. Temos inclinações (vícios) que devem ser superados para sermos virtuosos. A força para a superação vem dos estudos metafísicos. O homem sabe quando transgride “a lei”. O imperativo se auto impõe porque os homens podem transgredir as leis morais, mas sabem que não devem. Essa auto-imposição garante a liberdade do homem. O imperativo é aceito e seguido em função de uma vontade interna (que pode ser negada quando seguimos nossas inclinações). O que é contrário a lei (racional) deve ser combatido. A virtude deve ser cultivada. Como somos livres, devemos exercitar nossas forças internas para seguirmos os ditames da razão.
Percebamos que Kant não diz o que devemos fazer, ou seja, o conteúdo da lei. Ele apenas nos fala da lei que deve ser seguida sempre e de forma absoluta. Aplicar a norma nos faz agirmos corretamente. Ele afirma que sabemos com antecedência o que está certo e o que não está. Esse saber brota, salta de dentro de nós.  “A capacidade de distinguir entre o certo e o errado é tão inata quanto todas as outras propriedades da razão. Todas as pessoas entendem os acontecimentos do mundo como causados por alguma coisa e todos têm também acesso a mesma lei moral universal. Esta lei moral tem a mesma e absoluta validade das leis do mundo físico. Ela é tão basilar para nossa vida moral quanto é fundamental para a nossa razão o fato de que tudo possui uma causa, ou de que sete mais cincos são doze”.(Gaarder, Jostein. O mundo de Sofia: um romance da história da filosofia. São Paulo, Companhia das letras, 1995. Pg 356).
Existem dois tipos de imperativos. O categórico e o hipotético. O hipotético acontece na prática para alcançar algum objetivo. Exemplo: Ajudo a comunidade para ser eleito governador. Já o categórico difere porque, nesse caso, a ação é boa em si mesma, não é um meio para atingirmos outra coisa. Exemplo: ajudo uma pessoa porque devo ajuda-la, sem nada querer em troca. Ajo apenas pelo dever de agir. Essa ação praticada por ela mesma é chamada por Kant de boa vontade. Através dessa boa vontade escolhemos somente aquilo que a razão, independentemente das paixões (desejos), reconhece como bom.
O dever kantiano não é um catálogo de virtudes, uma lista de faça isso, não faça aquilo. O dever é uma forma que deve valer para toda e qualquer ação moral. Essa forma é imperativa, não admite “se...então”ou qualquer condição. Não pode ser condicional. 
Fórmula geral do imperativo categórico: Age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne uma lei universal.
Desta fórmula geral Kant deduz as três máximas morais que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados pelo dever ↓

╠ Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da natureza.

╠ Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como meio.

╠  Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.

Máxima: Princípio básico e indiscutível de ciência ou arte; axioma.

Essas máximas deixam clara a interiorização do dever, pois nasce da razão e da vontade legisladora universal do agente moral.




Para refletir

sábado, 25 de novembro de 2017

A República Democrática das laranjeiras








Na República Democrática das Laranjeiras, havia laranjas demais. Tanto os espaços públicos quanto os quintais estavam abarrotados de laranjeiras. A fruta estava por todo lugar devido a excessiva abundância. Portanto, esta fruta não tinha valor algum no mercado. A lei da República Democrática das laranjeiras sequer mencionava a fruta em suas normas, no seu código civil ou penal. Os cidadãos não se preocupavam com esse produto, pois não tinha nenhum valor, não era passível de furto nem, nunca, sugeriria um latrocínio! Quem praticaria um crime para ter o que havia para todos?






Certo dia as laranjeiras começaram a morrer. Alguma praga as atingia. Como havia em abundância, não houve maiores preocupações. Com o tempo, elas passaram a rarear. Sobraram apenas algumas árvores que produziam essas frutas. Dez famílias ainda as possuíam em seus quintais.



Passados vários meses, aconteceu o impensável! Uma dessas famílias teve seu pátio invadido e algumas frutas furtadas. Caso raro! Por que teria acontecido isso? As dez famílias se reuniram para discutir o caso. Perceberam que no país, só havia dez famílias proprietárias das únicas laranjeiras da nação! Perceberam sua importância: únicas proprietárias! Aumentaram seus muros. Contrataram seguranças e passaram a vender as laranjas. As vendiam abertas, sem as sementes! Queriam continuar os únicos proprietários. Enriqueceram.





As dez famílias ricas compraram seus deputados e senadores. Estes, criaram leis. As novas leis criaram novos tipos de crime: furtos de laranjas, roubo de laranjas simples e qualificado. Também não esqueceram de criar o latrocínio por laranjas! No início, as penas eram dentro da média de outros crimes similares. Com a crescente importância das laranjas, a coisa piorou. Roubo de laranjas qualificado e latrocínio por laranjas, tornaram-se crimes hediondos. Prisão em regime fechado em sua totalidade. Havia estudos até de pena de morte.



A República democrática das Laranjeiras, tornou-se altamente violenta. Antes destas leis não havia quase crimes.  Agora crimes é o que mais há. Ao criarem os tipos penais já citados, por consequência, criaram os respectivos criminosos! 



Consumir laranjas tão desejáveis e raras, só com o porte da nota fiscal! As dez famílias, hoje donas da República, eram muito exigentes. Cobravam a lei a risca! Queres laranja? Compra! Faça por merecer! Trabalha, economiza, faça empréstimo!



A violência não parava de crescer. As dez famílias abastadas começaram a doar equipamentos e armas para a polícia. Esta, imensamente grata, cuidava de forma especial os laranjais destas famílias. Os políticos financiados por elas, aumentavam salários e verbas para as forças de repressão.  O presidente da República Democrática das Laranjeiras, tinha muito suco de laranja em sua mesa. Era, inclusive, parente das abastadas famílias.



Os cidadãos desta nação se revoltaram. Ora, quando tinham laranjas demais, eram muito mais felizes. Agora, são espoliados para poderem usufruir das frutas que eram de todos! Como foi possível ficar para dez famílias, o que era de todas as famílias? As ruas estavam tensas, murmúrios e sussurros falavam em greves e levantes.



 Laranjas para todos! Que todos tenham o direito fundamental de ter ao menos um pé de laranja em cada quintal! Para cada boca, uma laranja!



As dez famílias estavam desconfortáveis. Os revoltosos não se calavam. Dia e noite a mesma ladainha! Para cada boca uma laranja!  



Então as famílias abastadas falam com o comandante da polícia.



Depois desta conversa, o comandante dá um golpe de estado e se torna o presidente/comandante da nação. As laranjas são salvas nos quintais das dez famílias. Os presídios lotam.



As pessoas voltam para suas casas sem laranjas. Agora também é crime hediondo o tráfico de sementes de laranjeiras. Laranjas não são para todos, só para os que se esforçam e podem pagar.



Alguns cidadãos revolucionários, extremamente perigosos e procurados pela polícia da República, tiveram uma ideia radical. Traficaram sementes de laranjas de países distantes. Nas madrugadas frias da República, começaram a plantá-las nos quintais abandonados. Também nas margens dos riachos em lugares de difícil acesso. Nas matas, nos morros, nas casas abandonadas! Onde houvesse terra, estava sendo plantadas laranjeiras.





Intelectuais das universidades, revolucionários e corajosos, ensinavam como plantar estas sementes, como cuidá-las. Pessoas desconhecidas cuidavam os lugares de plantio. Sociedades secretas faziam proliferar a campanha do plantio criminoso de laranjeiras. Quando alguns destes eram presos, outros tantos continuavam o trabalho. O tráfico de sementes se tornou epidêmico e ninguém mais pode controlar.



As dez famílias perderam o poder. O governo caiu.  As laranjas hoje são comuns. Todos podem tê-las e não valem mais nada. Há jurisprudência farta que afirma que as leis sobre as laranjas já não têm sentido. Não existem mais furtos e roubos de laranjas na República Democrática das Laranjeiras.



Mas dizem que estão tentando destruir os abacates! E que quando estes forem raros... tudo de novo!

Poder e violência. Coisas distintas.