sexta-feira, 20 de abril de 2018

A ética e a ética processual no CPC


Para iniciarmos o artigo, convém a reflexão sobre a ética em geral, ou a ética no sentido filosófico. Ela não é a mesma coisa que a moral.  A moral é o sentimento que temos em relação ao que nos afeta. Na verdade, temos opiniões valorativas sobre tudo.  O peso aqui é dado à expressão opinião. Ou seja, o senso comum parece abranger sob o aspecto do certo e do errado, do bem e do mal, toda a realidade que nos cerca.   Neste nível, apoiamos nossas concepções nas nossas experiências culturais, e nas nossas experiências de prazer e desprazer ao percebermos os acontecimentos diários.  A moral, portanto, não pretende, sequer necessita, de um fundamento racional.

Vários casos de crimes televisionados provocam comoção popular. Pessoas gritam por justiça, justiceiros pululam desejando a punição imediata dos “culpados”. Nada é processual, tudo é imediato, à flor da pele.  Os jornalistas comentam identificando a pessoa “imoral” com o veredito de  culpada. Os que estão em locais de “má reputação” são imediatamente suspeitos, e os defensores dos suspeitos são qualificados como “dos direitos humanos”. Estes últimos são percebidos como defensores dos bandidos, dos maus e da ralé.

Entretanto, basta um pouco de reflexão para percebermos que as conclusões a que o senso comum chega, não têm fundamentos lógicos (são falaciosos), não respeitam a sequencia causa-efeito, muito menos seguem a linearidade mínima para a reflexão plausível. A moral do senso comum salta argumentos, escolhe a faceta que acredita, evita o que não concorda. Faz escolhas específicas de acordo com suas crenças, e então fulmina qualquer esperança de imparcialidade ao dar seu veredito opinativo/definitivo.

Numa mesa em frente a uma taça de café num domingo, argumentando entre amigos,  não há problemas em julgar moralmente  (pois não há consequências no plano fático). É uma pratica culturalmente aceita e é milenar. Até por que, usarmos a razão sempre seria cansativo demais. Provavelmente algo impossível. Termos opinião e sermos livres para expressa-la não é algo ruim. O problema está quando o fazemos em momentos em que podemos ser tomados a sério, podendo provocar consequências negativas para alguém.



Não é possível levarmos uma vida normal sem que estejamos alicerçados em valores e convenções irrefletidas, embasadas na vivência cultural, nos liames afetivos de uma comunidade. A identificação rápida do bem e do mal sob o ponto de vista do senso comum, nos garante uma vida previsível e similar às demais vidas que nos cercam.  Daí vem certa segurança e harmonia que nos permitem viver em sociedade.



Diferentemente, a ética não permite que nos mantenhamos no nível da moral. A ética é a ciência da moral. Com isso, quero dizer que o senso comum passa a ser aferido por uma reflexão minuciosa.  Quando a razão se debruça sobre a opinião, a devoção a determinados valores passam a ser criticados de maneira dura. Nem tudo o que as pessoas creem são válidos para as demais pessoas. Todo o julgamento, no momento da reflexão ética, não é aceito de imediato, mas processualmente no tempo. Terá início, meio e fim.  E cada momento está sujeito a suspeições, interrupções para reflexões e a especiais questionamentos sobre prejuízos e contradições.

Quando nos submetemos à reflexão ética, nossos valores morais, nossos desejos de estarmos certos, serão educados e refinados.  Temos que educar nossa consciência, elevando-a acima das nossas paixões, fazendo-a refletir sobre nossa vontade e, principalmente, refletir sobre os critérios que usamos para julgar o certo e o errado. De certa forma, avaliar o outro é avaliar a nós mesmos, pois são nossos valores que julgam.  O meu julgamento espelha quem eu sou.  De certa forma, nesse contexto, faz sentido dizer que só damos o que temos, ou melhor: só julgamos com o que temos em nós para julgar.

A reflexão ética converge para o que chamamos de confiança. Essa confiança ocorre entre as pessoas e entre as pessoas e o Estado.

Reduzindo a hesitação nas relações sociais, a confiança atua como um mecanismo protetor hábil a evitar o caos e a desordem. Serve para conter a insegurança por meio da filtragem e organização do grandioso volume de informação complexa que recebemos. A confiança de uma pessoa na concretização das suas próprias expectativas é, portanto, um fator elementar da vida social. Ela vai viabilizar as relações sociais por meio de uma estabilidade que é alcançada pela existência de expectativas recíprocas. Com ela, o passado se estende para o futuro e o potencial de modificação inesperada das relações sociais é reduzido, o que torna possível o convívio entre os seres humanos. [1]



A segurança e a estabilidade num estado de direito é fundamental. As pessoas precisam confiar umas nas outras. Ou seja, a história da pessoa X justifica eu confiar que amanhã ela se comportará como sempre se comportou. As mudanças são mínimas e se ocorrem, espera-se que ocorram num intervalo de tempo razoável. Há, eu diria, um processo de transformação processual. Na mudança, podemos identificar razoavelmente os motivos da transformação. Em relação ao Estado (na sua relação com  as pessoas)  a questão é mais complexa. Entretanto, em relação a ele, os cidadãos devem esperar coerência e mudanças na esteira do tempo (nunca algo imotivado e instantâneo).  A previsibilidade e a confiança no Estado são, portanto, essenciais. A reflexão ética é fundamental para mantermos a estabilidade, já que a moral do senso comum não consegue faze-lo.



O filósofo moderno Thomas Hobbes, encontrou uma solução estranhável para nós contemporâneos. Como, segundo Hobbes, somos maus e egoístas, somente nos manteríamos em sociedade e confiaríamos no outro, em função do Leviatã. O Leviatã representa o príncipe, o Estado, com poderes absolutos. O medo, por consequência, faria com que o povo se mantivesse cordato em relação às leis. Ninguém mataria por medo do estado vingar o crime cometido, talvez matando o assassino. Ninguém faria o mal com medo do mal que sobre ele se abateria através da punição estatal. O príncipe pode tudo, convém teme-lo, portanto. Não haveria processos nem direitos. O que haveria é a certeza da punição exemplar e, com certeza, sem o respeito ao princípio da proporcionalidade.



Na verdade, Hobbes não defende propriamente a monarquia absolutista, baseado nas teorias tradicionais do direito divino dos reis, mais sim a ideia de que o poder, para ser eficaz, deve ser exercido de forma absoluta. Este poder absoluto resulta, no entanto, da transferência dos direitos dos indivíduos ao soberano, e é em nome deste contrato que deve ser exercido, e não para a realização da vontade pessoal do soberano. É nesse sentido que Hobbes é um contratualista – a sociedade civil organizada resulta de um pacto entre os indivíduos – sem ser um liberal, já que defende o poder absoluto, poder considerado legítimo enquanto assegura a paz civil.  É a esse soberano dado todo o traço poderoso que Hobbes denomina “Leviatã”, recorrendo a um nome de um monstro bíblico. [2]



A evolução da ciência jurídica, evidentemente, não pode aceitar em nome da paz social, a preponderância do Estado sobre o indivíduo através medo, pela dor e pela independência das decisões do príncipe em relação aos procedimentos legais.  A história dos homens em sociedade, fez com que a justiça do Estado passasse a se materializar no processo racional dos julgamentos. A confiança das pessoas entre si e entre o Estado nas questões de litígio, passam a se basear na ideia de um processo justo, racional e isento.



Podemos perceber que a ética avança sobre as concepções de justiça e, por consequência, sobre os procedimentos durante os julgamentos e sobre os limites das condenações. O processo para ser justo, passa a seguir princípios que o orienta internamente (quando os valores éticos se tornam normas do processo) ou externamente (pelos princípios éticos  constitucionais e internacionais).



O Código de processo civil segue, portanto, princípios éticos.  Um dos pilares valorativos do processo é o dever de boa-fé entre todos os envolvidos. No art 77 do CPC surge a expressão “dever” (de boa-fé), indicando o caráter valorativo. Estes deveres apontam para a necessidade das partes, seus advogados e o Ministério público serem probos e leais (em relação ao processo). Pretende-se com essa valoração conduzir os participantes a agirem segundo a verdade, a fundamentarem de maneira crível suas pretensões, a não produzir provas protelatórias ou inúteis. As partes teriam, portanto, uma credibilidade ética.



Com a expressão boa-fé,  o legislador quer se contrapor aos que conduzem seus procedimentos durante o processo com má intenção, com interpretações deturpadas das leis ou que ajam de maneira antiética.  Não são bem–vindas as atitudes que desarmonizam o ambiente processual. Inclusive podendo o litigante de má-fé, estar impedindo o direito a ampla defesa e ao contraditório da outra parte. O artigo 80 do CPC não deixa dúvidas quanto a esses impedimentos. Nele lê-se:




Considera-se litigante de má-fé aquele que:

 I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos;

III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI - provocar incidente manifestamente infundado;

VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.




A referência ética que perpassa o CPC enaltece a dignidade humana, inclusive impede o uso de expressões ofensivas. Ora, a cordialidade, o respeito à pessoa e a necessidade de cooperação não coexistem com a violência, mesmo que verbal. O artigo 88 refere in verbs:



É vedada às partes, à seus procuradores, aos juízes, aos membros do ministério público e a qualquer pessoa que participe do processo empregar expressões ofensivas nos escritos apresentados.



Mas, não podemos esquecer que na realidade:


O sistema processual brasileiro é um ambiente no qual prevalecem os interesses não cooperativos de todos os sujeitos processuais. O juiz imerso, na busca por otimização numérica de seus julgados, e as partes (agir estratégico) com a finalidade de obtenção de êxito.  Esta patologia de índole fática não representa minimamente os comandos normativos impostos pelo modelo constitucional de processo, nem mesmo os grandes propósitos que o processo, como garantia, deve ofertar.[3]



O valor que norteia o processo não é mais o do litígio quase beligerante. A imagem de advogados gladiadores, golpeando com suas espadas verbais, não é mais condizente com o ideal ético do CPC.  Mesmo as partes sendo opostas em relação às suas pretensões, e o juiz sendo o mediador estatal poderoso, todos estão juntos sob a égide do “mesmo” judiciário e do mesmo Estado: são eles (judiciário e Estado), queiramos ou não, os que garantem a estabilidade nas relações sociais. Então, quanto mais o espírito for de colaboração, mais a ênfase na harmonização se dá. Mesmo que haja sempre um vitorioso e um não vitorioso, as relações sociais continuam e o judiciário também. Estas afirmações estão expilicitadas no art. 1º do CPC, onde se lê:



Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva. 



O respeito do juiz pelos advogados e seus clientes, seu incentivo ao diálogo e a transparência na relação com as partes, é explicitada no artigo 10 do código já citado:



O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.



A tendência  é, sempre, a mitigação dos litígios. Esta intenção fica clara no ideal de autocomposição.  O artigo 190 do CPC nos diz:



Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.



Percebamos que a beligerância, de certa forma, é amenizada pela possibilidade aqui descrita.  A mesma linha de pensamento segue o artigo 3º do mesmo diploma. Acrescento na íntegra o caput do Art. 334 do mesmo código:



Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, devendo ser citado o réu com pelo menos 20 (vinte) dias de antecedência.



Conclui-se em sequência que os princípios éticos estão fortemente presentes, se irradiando por todo o Código de Processo Civil. Evidentemente que não é por acaso, afinal, a Constituição Federal de 1988 predispõe todo o ordenamento jurídico do país a uma exegese democrática e humana das leis, com apelo pela participação ética de todos. Inclusive, e principalmente, das autoridades que representam o Estado.



[1] Araújo, Valter Shuenquener de. O princípio da proteção da confiança: uma nova forma de tutela do cidadão diante do Estado. RJ. Impetus, 2009. Pág.13.
[2] Marcondes, Danilo. Iniciação à Filosofia: dos pré-socráticos à Wittgeinstein. 8ª edição. RJ, Jorge Zahar. 2004. Pág. 198
[3]  Júnior, Humberto Theodoro – e outros. Novo CPC: Fundamentos e sistematização. 3ª edição RJ. Editora Forense. 2015. Pág. 87.










domingo, 8 de abril de 2018

Princípio da presunção de inocência e as decisões do STF sobre a condenação em segunda instância - para pensar o caso Lula



     


      Hobbes, o renomado contratualista, criou a figura do Leviatã. Já que os homens são egoístas e sedentos por prazeres, tendentes à guerra, faz-se necessário o surgimento por contrato da sociedade civil. Segundo este filósofo, a sociedade será regulada por um Estado absoluto. Entendendo que o homem é naturalmente cruel, somente o medo da morte o contém em seus instintos.  O “deus mortal” Estado, seria conduzido por um rei com poderes absolutos, acima da lei.  Evidentemente, nesse contexto, que a discussão da justiça não era relevante para o monarca, muito menos o princípio da inocência. Para evitar um mal maior (dissolução da sociedade civil), o monarca poderia fazer o que quisesse (pois está acima da lei). Então, para manter o contrato social, tudo seria justo. Hoje, alegam, em nome de um mal maior – a corrupção – os togados estão cima da Constituição Federal. Uma espécie de reis hobbesianos. O judiciário seria um Leviatã acima da constituição e dos homens.

     

      Diversamente do ideal de Hobbes, hoje há princípios e garantias constitucionais. Uma proteção da “natural” inocência do cidadão. As pessoas nascem inocentes (sem crime algum) e, inercialmente, deveriam assim permanecer. Assim como não há um pecado original (nasceríamos já pecadores), não há pessoa culpada a priori. Os juristas chamam isso de princípio da inocência. Em consequência, para alguém ser considerado culpado é garantido um julgamento justo, imparcial, com ampla defesa e contraditório. Claro que isso dá trabalho. É demorado e custoso. Não é fácil provar que alguém cometeu um crime de maneira consciente e livre. Há sempre o risco de o estado tentar apressar as coisas. A celeridade a cima de tudo!

     

      A história é farta em exemplos de atuações do Estado em que o sujeito era culpado até provar o contrário. Vimos torturas, bruxas queimadas e pelotões de fuzilamento.  No Brasil tivemos mais de vinte anos de ditadura. A constituição de 1988 foi uma resposta ao excessivo arbítrio do Estado. Especificamente encontramos nela o inciso LVII do art. 5º da Constituição Federal de 1988: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". O que não foi uma inovação em termos históricos.  Afinal já tínhamos a Declaração dos Direitos do Homem (1789) e a Declaração Universal dos direitos Humanos (1948), entre outros pactos e acordos internacionais. Hobbes, portanto, perde de dez (ou mais) a zero.  Hobbes perdeu, mas não morreu. Veremos.

     

      Conforme o CPP no Art. 283: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. O que se harmoniza com o art. 5º da CF/88, art. LVII (já citado). Parece muito claro. Mas a claridade ofusca. Somente os condenados em sentença transitada em julgado, poderão perder a liberdade. Límpido. Mas a questão é profunda. Quando há o trânsito em julgado? Enquanto as provas são possíveis de serem questionadas ou quando a questão é o mérito? Aqui se vê algo que não é apenas aspecto jurídico, mas outra coisa (acima da lei). Afinal, quem decide essa questão? Os aspectos filosóficos? (O que é justo?) Ou os aspectos políticos? (O que valerá para o momento?) Ao decidir-se acima da lei, tornam-se os decisores togados uma espécie de poder constituinte. (ao gosto do Hobbes).

      

      Ao mudar o entendimento sobre a prisão em segunda instância (agora sendo esta possível), o artigo 283 do CPP é (ou era) a melancia que não se ajustava ao andar da carroça do STF.  Ora, então mudou-se a carroça! Ou seja, o STF acatou a votação em que se mantinha o artigo 283 do CPP, mas com nova (carroça) interpretação. Agora ele (o artigo) cabia na carroça. No meu entendimento, não se respeitou o garantismo explicitado por toda a Constituição Federal de 1988. Esse garantismo impede o início da execução da pena antes de esgotados todos os recursos possíveis. Lembremos estes dois artigos da CF/88 (um já citado):

“LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.”; e o “LXI — Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.”



Discutir se o trânsito em julgado ocorre na segunda instância ou no STF, não faz sentido. A resposta já está estabelecida na magna carta! Onde nela? Em todo seu artigo 5º e em vários outros momentos. O “espírito constitucional” aliado às convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, indicam que a inocência permanece até o fim de toda a persecução penal. Portanto, apesar dos adeptos saudosos do Hobbes, somente após esgotadas todas as instâncias, a ultima ratio se estabelece. Lembrando que a expressão corriqueira no direito, ultima ratio, se refere a proteção do direito penal ao que é essencial à vida. Sendo, portanto, a última opção aquela que restringe o bem mais relevante para a vida humana. Nesse caso, a liberdade.

terça-feira, 20 de março de 2018

A Vida Ética segundo Peter Singer




Como havemos de viver?

Peter Singer

Universidade de Princeton



Há ainda alguma coisa pela qual viver? Haverá algo a que valha a pena dedicarmo-nos, além do dinheiro, do amor e da atenção à nossa família? Falar de "algo pelo qual viver" tem um certo travo vagamente religioso, mas muitas pessoas que não são absolutamente nada religiosas têm uma sensação incomoda de poderem estar a deixar escapar qualquer coisa básica que conferiria às suas vidas uma importância que de momento lhes falta. E estas pessoas também não têm qualquer compromisso profundo com uma cor política. Ao longo do último século, a luta política ocupou frequentemente o lugar consagrado à religião noutros tempos e culturas. Ninguém que reflita acerca da nossa história recente pode agora acreditar que a política, por si só, bastará para resolver todos os nossos problemas. Mas para que outra coisa poderemos viver? Neste texto, dou uma resposta. É tão antiga como o alvor da filosofia, mas tão necessária nas circunstâncias atuais como sempre foi. A resposta é que podemos viver uma vida ética. Ao fazê-lo, passaremos a integrar uma vasta tradição que atravessa culturas. Além disso, descobriremos que viver uma vida ética não constitui um sacrifício pessoal, mas uma realização pessoal.

Se conseguirmos alhear-nos das nossas preocupações imediatas e encarar o mundo como um todo e o nosso lugar nele, veremos que existe algo absurdo na ideia de que as pessoas têm dificuldade em encontrar por que viver. Afinal, há tanto que precisa de ser feito. Quando este livro estava prestes a concluir-se, as tropas das Nações Unidas entraram na Somália numa tentativa de assegurar que os alimentos chegavam às populações famintas. Apesar de esta tentativa ter corrido muito mal, constituiu, pelo menos, um sinal positivo de que as nações ricas estavam preparadas para fazer alguma coisa acerca da fome e do sofrimento em áreas distantes. Podemos tirar as devidas lições deste episódio, de modo a que as tentativas futuras sejam mais bem sucedidas. Talvez estejamos no início de uma nova era na qual não nos limitaremos a ficar sentados à frente dos nossos televisores a ver crianças morrer e depois continuar a viver as nossas vidas abastadas sem sentir qualquer incongruência. Mas não são apenas as grandes crises dramáticas e com honras de noticiário que requerem a nossa atenção: há inúmeras situações, numa escala mais reduzida, que são tão horríveis e evitáveis como as maiores. Por imensa que esta tarefa se nos afigure, trata-se apenas de uma das muitas causas igualmente urgentes às quais se podem dedicar as pessoas que buscam um objetivo digno.

O problema é que a maior parte das pessoas tem somente uma ideia vaguíssima do que poderá ser viver uma vida ética. Compreendem a ética como um sistema de regras que nos proíbem de fazer coisas. Não a entendem como base para pensar acerca do modo como havemos de viver. Essas pessoas levam vidas eminentemente centradas nos seus interesses, não por terem nascido egoístas, mas porque as alternativas parecem inaptas, embaraçosas ou simplesmente inúteis. Não conseguem descortinar um modo de provocar impacto no mundo, e mesmo que conseguissem, para que se incomodariam? Não encarando uma conversão religiosa, não veem nada por que viver que não seja os seus próprios interesses materiais. Mas a possibilidade de viver uma vida ética fornece-nos uma saída para este impasse. Essa possibilidade é o objeto da presente reflexão. Aflorar meramente esta possibilidade será suficiente para desencadear acusações de extrema ingenuidade. Alguns dirão que as pessoas são naturalmente incapazes de ser outra coisa que não egoístas. Os capítulos 4, 5, 6 e 7 abordam esta convicção, de várias formas. Outros afirmarão que, seja qual for a verdade acerca da natureza humana, a sociedade moderna ocidental há muito deixou para trás o ponto em que a argumentação racional ou ética conseguiria alcançar fosse o que fosse. A vida atual pode parecer tão louca que é possível perder a esperança de a melhorar. Um editor que leu o manuscrito deste livro indicou com um gesto a rua de Nova Iorque que se avistava da janela e disse-me que, ali em baixo, os condutores tinham começado a ignorar os semáforos vermelhos só porque sim. Como, dizia-me ele, pode esperar que o seu livro faça qualquer diferença, num mundo cheio de pessoas assim? Na verdade, se o mundo estivesse mesmo cheio de pessoas que cuidassem tão pouco da sua vida - quanto mais das vidas dos outros - nada haveria que se pudesse fazer e provavelmente a nossa espécie não andaria por cá muito mais tempo. Mas a ordem natural da evolução tende a eliminar os que são assim loucos. Pode haver uns quantos em determinada altura e não há dúvida de que as grandes cidades americanas albergam mais do que a sua quota-parte destes indivíduos. Mas o que é verdadeiramente desproporcionado é o destaque que este comportamento tem nos meios de comunicação social e na mente pública. É a velha história daquilo que faz a notícia. Um milhão de pessoas a fazer todos os dias alguma coisa que revele preocupação pelas outras não é notícia; um atirador furtivo num telhado, é. Este livro não ignora a existência de pessoas malévolas, violentas e irracionais, mas foi escrito na convicção de que as restantes não deverão viver as suas vidas como se todos as outras fossem sempre inerentemente, com toda a probabilidade, malévolas, violentas e irracionais.

De qualquer modo, e mesmo que esteja errado e as pessoas loucas sejam muito mais comuns do que creio, que alternativa nos resta? A demanda convencional do interesse próprio é, por razões que aduzirei num capítulo posterior, individual e coletivamente prejudicial. A vida ética constitui a alternativa mais fundamental à demanda convencional do interesse próprio. Decidir viver eticamente é simultaneamente mais ambicioso e mais poderoso do que um compromisso político do tipo tradicional. Viver uma vida eticamente refletida não é uma questão de observar estritamente um conjunto de regras que determinam o que devemos e não devemos fazer. Viver eticamente é refletir de uma forma particular sobre o modo como vivemos e tentar agir de acordo com as conclusões dessa reflexão. Se o argumento deste livro é sólido, não podemos viver uma vida não ética e permanecer indiferentes à quantidade imensa de sofrimento desnecessário que existe no mundo atual. Pode ser ingênuo esperar que um número relativamente pequeno de pessoas que vivem de uma forma refletida, ética, possa revelar-se uma massa crítica capaz de alterar o clima de opinião acerca da natureza do interesse próprio e da sua relação com a ética; mas quando olhamos para o mundo e vemos a confusão que nele grassa, parece valer a pena conceder a essa esperança otimista a melhor hipótese possível de sucesso.

Todos os livros refletem uma experiência pessoal, independentemente do número de camadas de ilustração que a filtram. O meu interesse pelo tema deste livro começou quando era estudante de pós-graduação na Universidade de Melbourne. O tema da minha tese de Mestrado foi "Por que devo ser moral?" A tese analisava esta questão e examinava as respostas a ela dadas pelos filósofos nos últimos dois mil e quinhentos anos. Concluí relutantemente que nenhuma das respostas era completamente satisfatória. Depois, passei vinte e cinco anos a estudar e a ensinar ética e filosofia social em universidades inglesas, norte-americanas e australianas. No início desse período, participei na oposição à guerra no Vietname. Isto forneceu o contexto ao meu primeiro livro: Democracy and Disobedience, acerca da questão ética da desobediência a leis injustas. O meu segundo livro, Libertação Animal, defendia que o tratamento que dispensamos aos animais é eticamente indefensável. Esse livro teve importância no nascimento e crescimento daquele que agora é um movimento mundial. Trabalhei nesse movimento não apenas como filósofo, mas também como membro ativo de grupos empenhados na mudança. Estive envolvido, novamente tanto como filósofo acadêmico como de formas mais quotidianas, numa variedade de causas com uma forte base ética: ajuda aos países em vias de desenvolvimento, apoio a refugiados, legalização da eutanásia voluntária, preservação dos espaços selvagens e problemas ambientais mais gerais. Tudo isto me possibilitou conhecer pessoas que doam o seu tempo, o seu dinheiro e por vezes grande parte das suas vidas privadas a uma causa de base ética; e deu-me um sentido mais profundo daquilo que é tentar viver uma vida ética.

Desde a redação da minha tese de Mestrado, escrevi sobre a questão "Por que agir eticamente?" no capítulo final de Ética Prática e aflorei o tema da ética e do egoísmo em The Expanding Circle. Ao debruçar-me novamente sobre a relação entre ética e interesse próprio, posso agora recorrer a um passado sólido de experiência prática, assim como à investigação e a obras de outros estudiosos. Se me perguntarem por que devemos agir moralmente ou eticamente, poderei dar uma resposta mais ousada e positiva do que aquela que dei na minha tese anterior. Poderei apontar pessoas que escolheram levar uma vida ética e conseguiram ter impacto no mundo. Ao fazê-lo, investiram as suas vidas de um significado que muitas pessoas não creem alguma vez conseguir alcançar. Como resultado, aquelas pessoas consideram que as suas vidas são mais ricas, mais satisfatórias, e mesmo mais empolgantes do que eram antes de elas terem decidido dessa forma.

Peter Singer

Tradução de Tradução de Fátima St. Aubyn

Prefácio de Como Havemos de Viver?, de Peter Singer (Dinalivro, 2005).